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Artigo de Opinião

CONTOS INSULARADOS

4/09/2022 07:40

O cheiro a mosto almiscarado tomava conta daqueles dias de fim de agosto e arranque de setembro. Entre a fadiga que os dias pachorrentos de férias traziam e o cansaço que as vindimas e outras colheitas de verão acarretavam. Éramos quase sempre dos primeiros a vindimar. Desde que estivessem luzidias, estava na hora, de acordo com o pai, que não primava pela paciência, mas sobretudo não gostava de ver uvas podres entre os cachos de jaqué. Queria evitar a chuva ou que os bichos fizessem repastos entre as videiras e lhe diminuíssem o néctar nas pipas e também os dias de maior lotação no lagar, que não era próprio e obrigava a um exigente quadro organizativo entre a vizinhança. Mas havia sempre quem achasse que cedo ou que era tarde e era um assunto mais difícil de arrumar, do que carregar em ombros pelas veredas da freguesia quer a matéria-prima, em cestos, quer o produto final, em tinas.

O fim de agosto tinha uvas nas conversas, que escorriam espremidas para setembro, e acabavam em engaço a adubar as terras em preparação das plantações do outono. Era fim e começo. E era a figueira da beira-mar, com uma toalha no regaço das suas raízes e a mão de obra familiar, de grandes e pequenos, em círculo, a degustar os almoços dos dias de vindimas: Atum ou gaiado seco de escabeche e um figo ou amoras de sobremesa, que já tínhamos a barriga cheia de uvas. "As uvas que se comem hoje, é vinho que não se bebe amanhã", diziam e riam-se, antes de o cansaço se apoderar dos corpos amolecidos ao sol daqueles dias e as conversas e gargalhadas diminuírem ao ritmo que os cestos se enchiam e davam cor e organização aos socalcos.

Era o restinho das férias que viriam a seguir, a ânsia pelo novo ano que começava ali e não em janeiro, como o calendário assegurava, e as últimas festas de verão, para espairecer depois daqueles dias de trabalho, que eram de grande satisfação quando davam mais do que precisávamos e o excedente podia ser vendido. Era o cheiro a mecha de enxofre e um agradecimento a Nossa Senhora. Era a simplicidade dos dias de mosto, que se colava pegajoso ao corpo e parecia nunca mais sair, mas cuja sensação não volta mais. E as páginas em branco dos cadernos de capa preta onde íamos escrever a seguir.

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