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Artigo de Opinião

ÀS VEZES VOO. ÀS VEZES CAIO

Jornalista

5/06/2022 07:39

Eu sei que a terra cai sobre nós antes da aproximação ao céu, antes da rebentação da pele e da líquida luz do breu. Aqui, no fundo da árvore e diante das crias sem mães. Eu olho-me de baixo; a melancolia não se vê nos espelhos que entram no corpo através de um corte abrupto, sem sangue. É sempre maior a dor que não sangra, a dor limpa do homem que esgotou o tempo a respirar, como todos os vivos que sobem pela morte. Eis que um corpo tudo pode, ainda que findo e frio, ainda que plácido e subterrâneo.

Tudo o que é invisível arde intensamente, cresce e move-se por dentro dos olhos que puderam ver para sempre, entre a treva e a mão quente contra a última pedra do corpo.

Eu sei que as luzes escavam cidades inimagináveis sobre a cabeça que desconhece a inclinação do corpo ou a sombra mais escura por trás dos olhos da mãe. O nascimento é sempre um precipício; e ainda que as flores expludam para amparar a queda, esta não poderá nunca ser interrompida. Havemos de recordar as flores, o seu odor de espanto contido nas metástases de cada pedra, da última à primitiva. Haverá sempre a casa esquecida pelo mar onde já entrámos, nus e entregues, livres de todos os medos com que as mãos das mães nos lavaram sob um sol impotente para secar a água do corpo. E eis-nos aqui, procurando a casa sumida por dentro da terra, sangrando os dedos numa profundidade por reanimar, adivinhando uma boca na pedra que não desce. Não sei se o silêncio pode alguma coisa até à escuridão do mar ou se o corpo saberá, ainda, como sombrear a pedra sem ferir a queda. Como saber se estas mãos tocam, como antes, a leve náusea do tempo? Onde? Eu sei que o meu corpo havia já perdido todas as sombras quando pôde, por fim, reconstruir-se à luz do teu, num tempo sem noites nem dias para forjar o peso de um corpo.

Eu sei que a terra cai sobre nós de todas as vezes que o céu existe. Sabes, há sempre o corpo que resiste, a pele magoada que se espalha pela noite solar até ao fulcro da melancolia, essa mancha benigna que nem a alegria extingue. São irreprimíveis os corpos que permanecem entre os vivos, portas que só o medo dentro da mão poderá destrancar. É preciso coragem para entrar pelo medo dentro, abrir a boca para comer a treva voada do ninho e, então, adormecer, fincar os joelhos no turvo silêncio da casa que o mar não quis. Antes, ainda.

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