MADEIRA Meteorologia

Artigo de Opinião

DE LETRA E CAL

18/04/2022 08:12

Há duas épocas que me trazem de volta o meu pai e com ele a infância. O Natal e a Páscoa.

Por um momento, vou fingir que ainda falta muito tempo para o Natal, como acontecia quando éramos pequenos e os meses tinham a arte de parecerem anos, os anos séculos e a vida uma coisa demorada como uma brincadeira interminável ou como a magia das histórias.

Vou fingir que nos escondemos outra vez para te surpreender quando chegavas do trabalho e nós gritávamos balamento e tu fingias-te surpreendido e derrotado pela nossa vitória anunciada. Sim, porque quem iniciava o jogo eras tu, mas já sabias da impossibilidade de ganhar.

A casa ficava mais elevada do que a tua chegada e nós podíamos vigiar o teu passo certo pela escadaria e estar a postos, escondidos, para estancar o teu regresso com a palavra mágica e ver-te sorrir com a alegria da nossa ruidosa antecipação da vitória.

Todos os anos da infância foram este jogo com vitórias pré-estabelecidas, resultados pré-definidos e amêndoas e chocolates como troféus de açúcar.

Não sabíamos ainda perder e para ti a derrota tinha a forma de um sorriso redondo de cinco catraios que ainda não sabiam do futuro.

Éramos todos presente naquela imortalidade que nos habitava como se a perda fosse apenas um jogo que terminava com açúcar às cores. Mesmo que por detrás de tudo isto existissem histórias tremendas de morte e de ressurreições impossíveis.

Eras o adversário ideal deste jogo. Balamento de afetos gritado para ti e através de ti. Antecipação de uma memória doce que havia de durar mais do que o doce açúcar e mais do que a tua vida.

Não sabíamos ainda que a maior derrota seria talvez crescer, talvez descobrir que não se pode vencer sempre, talvez aceitar que nos trouxesses derrotados da tua falta e da falta de um tempo longe de toda a dor. Só amêndoas e torrões de açúcar, só escondidos à tua espera para gritar balamento, só o sorriso da vitória infantil sobre a complacência do amor. Só nós e tu e um jogo feliz na Páscoa e nas férias antes das férias grandes, antes e depois de todos os natais.

Balamento, pai! E a antecipação do açúcar nas bocas cheias de sorrisos, na casa cheia de vida, num tempo cheio de tempo, numa infância cheia de tudo, na felicidade quase plena e infinita de não sabermos ainda a derrota.

OPINIÃO EM DESTAQUE

88.8 RJM Rádio Jornal da Madeira RÁDIO 88.8 RJM MADEIRA

Ligue-se às Redes RJM 88.8FM

Emissão Online

Em direto

Ouvir Agora
INQUÉRITO / SONDAGEM

Concorda que Portugal deve “pagar custos” da escravatura e dos crimes coloniais?

Enviar Resultados

Mais Lidas

Últimas