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Artigo de Opinião

CONTOS INSULARADOS

20/03/2022 08:00

Há o pai bom e o pai mau, dizia depois de um copo a mais quando lhe dava para a baboseira. E nos primeiros tempos era quase sempre assim. As lágrimas, que os excessos dos primeiros anos provocavam, davam vontade de rir, porque vinham embrulhadas em lamúrias ternurentas. As saudades de mãe que mal conhecera, as memórias de outros tempos e quase sempre um episódio "histórico" marcante que podia ser a vitória do Benfica num ano longínquo qualquer com uma equipa sabe Deus de onde e de jogadores cujo nome já ninguém conhecia.

Mas a dada altura o excesso tornou-se hábito e o hábito passou a fazer outro monge. A baboseira tornou-se impaciência e intolerância crónica para com os outros. E o que fazia rir passou a fazer chorar os mais próximos.

Era difícil ver o pai extremoso debaixo da ira, da fúria e da exaltação. O que não comia a melhor fruta, para trazer para os pequenos. O que preferia o macarrão em seco para dar o chouriço corrente e parco, daqueles tempos de aperto, aos meninos. O que os transportava às cavalitas ou mesmo num cesto de vindima quando ia para a fazenda. Ou no carro de mão. O paciente. O que tinha disponibilidade para responder aos porquês e eram tantos, mesmo depois de um dia de trabalho na função pública, seguido de mais algumas horas a trabalhar na terra, ao sol e à chuva. O dinheiro contado com uma prioridade bem definida: Que estudassem.

Ele próprio tendia a esquecer o pai bom, onde orgulhosamente e babosamente se colocava no início dos tempos, em que um copo a mais dava vontade de rir. Menos quando os excessos se tornavam impossíveis e o fígado e estômago davam sinais ao cérebro para abrandar. Vinham um, dois, três dias, às vezes quatro dias bons. Dias sem medo, que eram o prato do dia e não havia rodela de chouriço que consolasse. Nem as goiabas, mangas e abacates tão amadas sabiam bem.

O mau tende a sobrepor-se ao bem. Mas atrás de tempo, tempo vem. Contrariando por vezes um destino que parecia escrito, os pequenos estudaram. Talvez não haja pai bom e pai mau. Como não há pessoas sempres boas e raramente as há sempre más. Poderá haver um ato de bondade mesmo da carcaça mais cruel. Era um pai. Alcoólico. Bom, tantas vezes mau, mas que acertou onde era mais importante.

Era difícil ver o pai extremoso debaixo da ira, da fúria e da exaltação. O que não comia a melhor fruta, para trazer para os pequenos.

Sandra Cardoso escreve

ao domingo, de 2 em 2 semanas

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