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Artigo de Opinião

DE LETRA E CAL

29/11/2021 07:00

É curiosa a forma como nos lembramos de umas coisas enquanto que outras são completamente esquecidas.

Se fizer um esforço quase que consigo fazer um trajeto do que me ficou do percurso de vida que me trouxe até aqui, precisamente a este dia quase no fim de um novembro com chuva e sol, a poucas semanas do Natal.

Uma das primeiras memórias é, sem dúvida, o rebuliço da casa da infância, a espera sempre longa pelo dia das prendas, o reflexo das luzes da gambiarra na parede do quarto, o sofá verde, o meu pai encostado ao umbral da porta a fumar um cigarro, o cheiro do cigarro, as sardas sorridentes do meu irmão.

A mão sempre trémula do meu pai a colocar a agulha no disco de vinil a rodar no gira-discos. A voz do Carlos do Carmo e as palavras de Ary dos Santos. O dia em que o meu pai me ensinou isto mesmo: a autoria.

Mais à frente, a sala de aula da primeira escola, os véus das freiras, a capela e a luz que tinha no dia em que vi a primeira pessoa morta. As duas laranjeiras da infância e a forma como a vassoura tinha dificuldade em chegar às flores depositadas entre os calhaus rolados do quintal.

A chuva a cair no cimento da infância, o medo dos trovões, o medo do escuro. O esforço para pensar como seria se não houvesse ninguém no mundo, nem pessoas, nem bichos. Esse nada que tentava imaginar branco e com nevoeiro.

A adolescência que parecia não se encaixar de forma correta no mundo. O corpo a crescer com a cabeça a criar ideias próprias e formas de sofrer e ser feliz.

Todas as vezes em que acreditei no amor. O primeiro beijo junto à escola, a primeira noite fora de casa, o dia em que me ofereceram uma praça, o dia em que devolvi a praça atrás de uma felicidade maior. Todos os dias em que essa felicidade falhou.

Todas as escolas seguintes. A universidade aqui perto e a outra mais longe.

Os amigos que se fizeram no percurso: os que permanecem e os outros que se perdem nas distâncias e nos dias. A banda sonora de tudo.

A primeira vez que nos encontrámos por debaixo do outdoor da Super Book.

A primeira viagem no carro. Ainda antes, a forma como nos reconhecemos na estação do comboio. A primeira entrada em casa. A luz desse dia. As confissões e a vida tão nua perante a tarde quente.

A primeira vez que me apeteceu voltar atrás. A primeira vez em que decidi seguir em frente. A tua mão na minha. A primeira vez em que fomos como se sempre tivéssemos sido apenas isto: a felicidade.

A primeira vez em que te perdeste e eu fiquei assustada. Todas as vezes em que te perdeste e eu já em pânico.

A primeira e última dança no quarto. O sangue naquele dia do meu nome gritado. Os meus pés aflitos na madeira das escadas.

A última noite em que tive de te fazer respirar. A última tarde em que morreste nas minhas mãos. E mais uma vez a felicidade a falhar sem salvação.

A vez em que me ensinaste que podemos escrever ficção e essa ser, ainda e sempre, a mais pura verdade.

A memória é também assim: pode ser ficção ou verdade, mas será sempre nossa e livre. Tal e qual como esta crónica, metade mar, metade tempestade. Metade facto, metade sonho. Memória por inteiro.

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