MADEIRA Meteorologia

Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

5/11/2021 08:01

O rapaz tinha 15 anos e o vulto de um homem adulto. O seu corpo amanhecia, mas na sua sombra era já dia. Desceu o caminho empedrado e entrou na venda, no lado do bar. Dois velhos estavam sentados no muro em frente e um deles disse assim:

- Faz agora sete anos que o Fernandes se enforcou.

O outro abanou a cabeça que sim e o primeiro acrescentou:

- Qualquer dia o irmão do Fernandes vai deitar as culpas em cima deste pequeno.

- O rapaz não teve nada a ver com aquilo - disse o outro.

- Não teve, mas foi por causa da mãe dele que o Fernandes se matou - respondeu o primeiro e depois agoirou:

- Pode ser que seja hoje.

No espaço reduzido do bar, dois homens estavam à conversa. Um deles era o dono da venda e estava atrás do balcão a cortar um chouriço às rodelas com uma faca cuja lâmina tinha vinte centímetros. O outro era o irmão do enforcado e, naquele momento, encontrava-se numa fase da bebedeira assinalada pelo destemor e pelo desejo de violência. Mal viu o rapaz entrar, a luz do inferno iluminou os seus olhos.

Lá fora, porém, anoiteceu.

- Manel, serve um copo de vinho ao rapaz - ordenou. - Eu pago.

O rapaz encostou-se num canto, entre a parede e o balcão, e nada disse. O taberneiro olhou para ele sem saber o que fazer, vacilou, mas depois pôs-lhe um copo de quarto de litro à frente e encheu-o com vinho do jarro. O rapaz bebeu devagar, mas sem parar, até ao fim, coisa que empolgou o irmão do enforcado e fê-lo avançar com uma série de elogios simulados, cínicos e cáusticos às qualidades do jovem, que na verdade eram insultos velados, e isto durou quase meia hora e mais três copos de vinho bem servidos, a transbordar, com o rapaz sempre calado.

Por fim, o irmão do enforcado encarou-o e falou assim:

- Há uma coisa que tenho apertada aqui para te dizer há muito tempo - e bateu com força no peito, pum pum pum.

O rapaz fixou os olhos do adversário, raiados de sangue e ódio, e ficou à espera, em silêncio, sempre em silêncio.

O outro disse:

- A tua mãe é uma puta.

E continuou:

- O meu irmão matou-se por causa dela, mas ela é uma puta.

E mais ainda:

- A tua mãe é a maior puta desta terra.

O dono da venda abriu os braços e disse que estava na hora de fechar o estabelecimento e empurrou os dois para a rua, primeiro o irmão do enforcado, depois o rapaz, e ficou lá fora a vê-los ir, um para baixo, outro para cima, até se perderem no escuro. Depois, sentou-se na soleira, pensando que um deles podia voltar para trás, no encalço do outro, e era melhor ficar de atalaia para evitar uma tragédia. O sossego da noite fê-lo adormecer por um segundo, tempo em que sonhou que era um coelho a fugir de um caçador que era ele próprio prestes a apertar o gatilho contra si. Uma aragem repentina fê-lo abrir os olhos e pareceu-lhe ter dormido uma hora.

Levantou-se, entrou na venda, fechou as portas por dentro. Virou-se para o balcão e assaltou-o uma profunda mágoa por ter visto o rapaz ser insultado de forma tão ruim e gratuita no seu estabelecimento. Para mais, nunca lhe parecera correto chamar à conversa gente que já tinha morrido, ainda por cima daquela maneira. Doía-lhe também, talvez mais do que tudo, o silêncio do rapaz e pensava que se ele fosse tão homem em idade como era em aparência haveria de vergar o outro a soco e pontapé, mas é ainda uma criança, pensava o merceeiro, enquanto limpava o balcão com um pano húmido e malcheiroso, é apenas um miúdo, pensava ele, com as mãos a arrumar copos para aqui, jarro para ali, chouriço para cima, faca para baixo… faca…

- Onde está a faca, porra?!

E virou-se sobre si, procurando-a.

OPINIÃO EM DESTAQUE

88.8 RJM Rádio Jornal da Madeira RÁDIO 88.8 RJM MADEIRA

Ligue-se às Redes RJM 88.8FM

Emissão Online

Em direto

Ouvir Agora
INQUÉRITO / SONDAGEM

Concorda com a mudança regular da hora duas vezes por ano?

Enviar Resultados
RJM PODCASTS

Mais Lidas

Últimas