Esta pequena tem bichos de pêssego". A frase acompanhou a infância e continuou a ecoar pela adolescência fora até a idade adulta.

Como daquela vez em que ia na procissão das velas tão absorta na luz ondulante que tinha à sua frente, e que tornava as ruas de sempre num espaço esotérico, e se esqueceu de deitar conta à vela embrulhada em papel de manteiga que levava ela própria. Abrasou parcialmente o papel e chamuscou o cabelo da senhora que ia à frente a cantar "Avé, avé Maria", dois tons acima, uma espécie de Maria Callas desalinhada da freguesia. Apesar do desafinanço, não foi de propósito o atiçar de lume às mechas já cinzentas, mas é certo que depois do incidente a cantadeira baixou os decibéis, numa melodia mais resmungada.

Lá se foi a fiada perfeita das luzes ladeira acima, a procissão desenformou na parte de trás, a cantoria interrompeu e a avó, naturalmente, deu o ralhete costumeiro: "Cruzes, bico aberto, tem bichos de pêssego esta garota".

O padre não deu por nada e a santa, do alto do andor, também não mostrou sinais de perturbação. Ia meio de lado, é certo, que um dos festeiros, que eram gente respeitosa que carregava a santa nas procissões, era franzino e pelo menos um palmo mais baixo, em comparação com os demais, habituados aos trabalhos braçais da terra. Uns eram serventes, outros pedreiros, outros homens de enxada, fosse a tempo inteiro ou em complemento aos salários que não eram fartos, mas não abalavam a fé, pelo menos naqueles dias. E era na imagem da virgem torta que agora concentrava os pensamentos, quando voltou a pegar fogo ao papel que restava e atirou a vela ao chão pisando-o sem dó, nem piedade, num gesto que roçava a heresia naquele cenário. A avó desistiu, vencida, e abanou a cabeça em descontentamento, o que raramente era bom sinal. Os outros miúdos, que assistiram à cena, riram, foram repreendidos e só lhe restou pegar na vela mal-amanhada, a que alguém deu luz de novo, e seguir a marcha de volta à igreja, esperando não haver mais contratempos.

"Bichos de pêssego", queixava-se a avó a contar a tropelias da neta. Mas em casa não escondeu o riso trocista, com o cabelo queimado da Maria Callas de trazer por casa. "Pelo menos calou-se, que nossa senhora não oiça", dizia pondo a mão na boca e benzendo-se de seguida e de supetão como que a enxotar os tais bichos da alma.