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Artigo de Opinião

DE LETRA E CAL

19/04/2021 03:00

O que se deseja a uma casa na despedida?

Que se lembre de nós.

Que não se feche aos pássaros.

Que guarde a memória da luz.

Que guarde a memória das mãos que a afagaram e fizeram.

Que se esqueça, se possível, da dor que a habitou. Que, na mesma medida, se recorde da felicidade.

Que se lembre do dia de uma dança no quarto junto à janela. Que guarde a música e a voz de Cohen.

Que se lembre da amizade e dos amigos que por ela passaram, mesmo quando se despediam e se abraçavam na ausência e na falta.

Que se recorde quando a música tocou pela última vez no adeus aos discos. Uma banda sonora.

Que se lembre do primeiro encontro e de todos os seguintes. Que guarde as partidas e os regressos.

Que se lembre da primeira vez em que ficamos nus perante o futuro.

Que se esqueça da primeira vez que pressentimos o fim. Que se esqueça do fim.

Que se recorde dos livros, da leitura à janela, do lápis que os sublinhava.

Que se lembre do riso e dos sorrisos e dos planos que se desenharam com uma arquitetura certa. São esses traços do coração que constroem o lugar e a casa.

Que se recorde da chuva tal como ela era sentida por nós e não de uma outra forma.

Que se recorde dos dias claros pelos nossos olhos. Que guarde a sombra e a forma das nuvens como nós as pressentimos.

Que guarde o nosso som no primeiro encontro. As coisas terríveis e grandiosas que se disseram e confessaram, mas também a verdade e a ternura com que sempre foram ditas.

Que guarde a sombra dos gatos fugidios que apenas procuravam comida e que a encontravam.

Que guarde a memória da taça verde dos gatos quando alguém a afastar, porque haverá, quem sabe, um cão futuro. Que saiba acolher esse cão.

Que saiba acolher quem vier a seguir. Que tenha crianças a correr pelo jardim. Não serão as crianças imaginadas e sonhadas por nós, mas serão crianças e nada é mais feliz do que a vida a começar.

Que guarde os nossos planos e a memória dos nossos objetos a nascerem de nós e a projetarem a casa futura interrompida pela devastação. Que, apesar disso, saiba a casa sobreviver como nós não soubemos ou não nos foi possível.

Que aceite a circunstância triste de as casas protegerem das tempestades, mas possuírem uma arquitetura ineficaz para afastar os perigos que crescem por dentro.

Que se lembre dos nossos pés descalços que conheciam de cor a madeira do chão.

Que guarde as árvores e a sombra delas.

Que se lembre de todas as noites em que subimos as escadas e nos abraçamos no topo e pelo caminho.

Que se lembre do nosso sono seguro e de todas as vezes que acordámos para saber e comprovar que éramos verdade.

Que se esqueça de quando começámos a despedida que não queríamos.

Que de todas as coisas se lembre sobretudo do amor. Sim, é importante não esquecer sobretudo o amor.

Que a casa se lembre sempre do amor. O amor pode ser o último elemento de um inventário, mas sem ele nada mais existia antes desta linha. É importante que uma casa não esqueça esta regra essencial.

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