Lutar contra a rigidez
Não muito longe da escultura de Ricardo Veloza, Monumento aos Trabalhadores que faleceram nas grandes Obras na Madeira, na Praça da ASSICOM, telefonei ao João Góis, trompetista, a convidá-lo para ir ver o Ricardo Toscano, que tocava nesse mesmo dia. O João não pôde ouvir o saxofonista português tocar – por vezes, como a Laurissilva ainda fala –; contudo, explicou-me com tanto entusiasmo o trabalho que fazia enquanto musicoterapeuta na Associação de Paralisia Cerebral da Madeira (APCM), que fui vê-lo in loco. Quando entrei naquele caminho para o Pico do Funcho, a rádio tocava um kýrie enquanto as nuvens brincavam com as montanhas.
Os mais de 80 utentes (internos e externos) da APCM, cujo núcleo regional data de 1991 e que se tornou associação em 2005, são na sua maioria portadores de deficiência profunda, não podendo alguns deles sair do quarto, ou da cama, ou fazendo-o apenas algumas vezes por semana. No programa Causa Nobre da RTP Madeira, Cristina Andrade, Vice-Presidente da APCM, afirmara que o objectivo da instituição era aproximar as pessoas à mesma para poder «desmistificar os preconceitos» que possa haver em relação à deficiência, sendo esta última apenas uma «condição de vida». Falei com o António Freitas, campeão regional de Boccia e um dos dinamizadores da rádio interna (Rádio Ritmo – Rádio Interna Totalmente Maluca e Original). A rádio tem várias rubricas, como a do Sérgio, que nasceu na África do Sul, e que apesar de não poder falar, comunica, e até conta histórias, através da técnica da comunicação aumentativa e alternativa. Esta técnica, com base numa tabela impressa com símbolos e cores personalizadas para cada utente ou num tablet que emite voz sintetizada permite também à Sandra, outra utente, dizer «não consigo falar, mas adoro conversar». Disseram-me também que o Vitinho escrevera um livro com base na técnica da escrita adaptada (manipula o computador com a bochecha). Vi o Dario com a sua t-shirt «Pop Art is for everyone» (A arte pop é para todos) e o Fábio, que canta fado e outras coisas mais. Também ainda consegui ver o Nélson, o meu antigo vizinho que já não via desde a altura da pandemia – as visitas na APCM também foram limitadas –, a Fátima, que gosta de música delicada, e a Mariana, que apesar da rigidez nos membros inferiores gosta de tocar teclado e conduz, a cadeira e a vida, com a cabeça. O Zé trabalhava num cenário que envolvia a cabeça de uma fada e, nessa sala, estava também o Fernando – especialista em casas e canoas em miniatura –, o seu irmão António Sousa, que descobri através da esmerada tapeçaria de Arraiolos exposta na parede. Este último dizia andar a lutar contra um gigante (a doença) e ter esperança na ciência, mas debatia-se com uma certa frustração, que o levava a não querer, por ora, tentar a música. No quarto, visitámos a Mafalda, que tem 23 anos e está acamada. Tinha uma grande rigidez, que só o espaço aquático parecia aplacar – a APCM também tem uma piscina e terapeutas –, mas o João lá tinha a sua maneira de brincar com ela e aferia a sua reacção pelo olhar. Vimos também a auxiliar Zé – que o João me disse trabalhar aí há 26 anos, mas que ainda não lhe acabara o carinho –, e a auxiliar Vânia, à qual nunca falta disponibilidade.
Nessa altura, o João já andava com um carrinho de supermercado transportando uma coluna e um teclado, e dirigimo-nos ao quarto da Susana, ventilada devido a um acidente, tendo-se licenciado em economia já depois do mesmo. O seu internamento no Hospital de Santa Maria, onde por vezes servia de intérprete a pacientes estrangeiros, despertou nela a vocação de tradutora, o seu mister. A Susana gosta de cantar e escreve letras para canções, incluindo um rap que o João vai musicar (Vai tudo p’ra Meia Serra [a estação de tratamento de lixo]). Vieram as canções e a Susana cantou Suzanne de Leonard Cohen («[…] you’ve touched her perfect body with your mind […]») (tu tocaste o seu corpo perfeito com a tua mente). Que saibamos tocar-nos e lutar contra a nossa própria rigidez.