-Já vão sendo horas de ires comprar um brinquedo pr’ó Natal para pores no sapatinho aos teus pequenos. Quadenão, mais pr’á frente, ninguém se mexe nas lojas cheias de gente.
Era assim nos anos noventa e ainda é neste moderníssimo século XXI. Tudo igual. Eu tentei contrariar essa regra bizarra, mas depois ia na onda da loucura daquela gente desconhecida à procura de nadas para oferecer a todos no Natal, desterrar o subsídio e chegar a janeiro na penúria quase. Eram as meninas das lojas sem mãos a medir, atarefadas, stressadas e já rabugentas de exaustão, à procura de impossíveis para atender a “é só para dar uma lembrança”. Uma pessoa entrava na loja apinhada de gente, roupa revoltada em cima dos balcões, filas de gente aos molhos que não havia quem se mexesse. Eu até ficava nervosa com vontade de virar costas e me deixar quieta até ao Ano Novo. Afinal, o que é o Natal? É luzes sem fim a iluminar a cidade? É presépios a imitar a imagem e semelhança da família de Nazaré com bordados Madeira? É festas por todo o lado com broas de mel e licores à mistura para aquecer? É relembrar e saber que o Menino Jesus veio ao mundo para remissão dos nossos pecados e depois mostrar-lhe esta luxúria toda?
O que faz uma pessoa ser assim, quando no Natal se celebra o nascimento do Menino Jesus tão pobrezinho que não é servido destes manjares?
Para a tia Elvira, o Natal era um cantarinho tão pequenino, tão arreitado, com um sapatinho apenas em cima do frigorífico; para minha mãe, era, na jarra da cozinha, o cheiro a cedro que ela trazia do Passeio, quando ia buscar o leite a casa do tio João, no tempo em que Elisinha “do deixa arder” trabalhava na quinta do doutor Roberto Monteiro, nos Estanquinhos. Há quanto tempo isso foi?
Há quem afirme que estamos todos enganados; que o Menino Jesus não nasceu em dezembro. Seria impossível os pastores estarem na serra com os seus rebanhos numa época do ano tão gelada e tempestuosa. Nem Maria e São José se meteriam a caminho no burrito com aquele tempo de neve e frio. Mas somos teimosos! O que se nos há de fazer?
Este ano, já se combinam jantares de Natal e já se trata do que oferecer aos outros “só para dar uma lembrança”. Também já ouvi dizeres como estes: “O Natal irrita-me”; “O Natal é consumismo”; “Não percebo a alegria desta gente”; “Não percebo o que se celebra no Natal com esta algazarra toda”. Pois é verdade. Mas vamos uns atrás dos outros para não sermos diferentes. O povo e as suas tradições têm muita força.
E agora eu vou contar um conto engraçado a vocês. É dos anos noventa, quando os meus pequenos eram pequenos. Aconteceu por estes dias anteriores ao Natal. Eu fui esperta e comprei o presente para eles cedo, na “Nova Esperança” da rua São João Deus, em frente à “Papaia”. Era uma caixa grande com que eu andei, bem abafadinha, para eles não bisparem, perto de um mês, dentro do porta-bagagem do meu Renault5 QH-93-92. Ora, um dia meu pai ia comigo, eu a guiar, nervosa, os pequenos à solta atrás a fazer tontices, perdidos de riso. Meu pai a dizer “Quem manda aqui és tu, não ligues a eles, pode haver uma terceira guerra mundial ali atrás que tu não tiras os olhos da estrada; eles não se vão matar e vamos todos chegar a casa a salvo, o caminho é em frente.” Bem, muito certo, só que, numa lomba da estrada da Boa Nova, começa uma cantoria vinda do porta-bagagem. Era a pista de comboios, o brinquedo pr’ó Natal, que tinha começado a trabalhar com o solavanco. Aquilo tinha música e tudo e os pequenos, agora muito amiguinhos um do outro, queriam informações detalhadas. Ora, meu pai sabia o que era aquilo e começou a disfarçar: “Isto parece os sinos de Mafra que estão pr’á í a tocar.” E para abafar o som, pôs-se a cantar a Primavera das “folores”. Parecia um carro de loucos, o meu Renault5 QH-93-92.
E no Natal, os pequenos e os grandes da casa eram todos crianças a querer armar a pista de comboios, que ganhou o epíteto “Os sinos de Mafra”.