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Artigo de Opinião

29/11/2025 08:00

«Magic mirror on the wall, who’s the fairest one of all?»Walt Disney (1937), “Snow White and the Seven Dwarfs”

«Se puderes olhar, vê.Se puderes ver, repara»José Saramago (1995), “Ensaio Sobre a Cegueira”

O português é uma língua rica ou pobre?

A pergunta surgiu num jantar de árbitros do 28º Open Internacional de Bridge da Madeira. Este torneio disputa-se anualmente, em novembro, desde 1998 e tem crescido em dimensão, popularidade e reputação.

As razões são diversas: a Madeira é um destino apetecível todo o ano e o nosso outono ameno é especialmente apetecível para quem vive habitualmente no centro e norte da europa, a hotelaria e restauração apresentam uma boa relação qualidade/preço e a organização procura fazer jus à proverbial hospitalidade madeirense, mostrando atenção a vários detalhes.

Um desses detalhes prende-se com a escolha dos elementos convidados para a equipa de arbitragem. Por um lado, procuramos escolher entre os melhores dos melhores, por outro lado, é importante que haja diversidade de nacionalidades, que reflita pelo menos parcialmente, a diversidade dos praticantes (e este ano eram de 44 nacionalidades diferentes).

A equipa deste ano, para além de portugueses, contava com árbitros de Gales, Irlanda, Países Baixos, Polónia, Suécia e, remotamente (para consultas adicionais), da Alemanha, Dinamarca, Estados Unidos e Turquia. Por isso, os habituais jantares em conjunto entre sessões dos torneios principais são espaços privilegiados de conversa animada e convívio que não se limitam aos aspetos técnicos da modalidade.

No meio de uma conversa sobre a riqueza da linguagem e sobre o desafio que é interpretar as peculiaridades das leis de um desporto global que se rege pelo mesmo código e pela tradução de várias nuances nas diversas línguas derivámos para a literatura e para os clássicos da literatura, desde Homero às fábulas infantis, com várias curiosidades à mistura.

Por exemplo: há uma corrente (comum) de que o grego antigo era uma língua pobre para descrever cores, especialmente os matizes de azul, porque Homero descreve o mar como “vinho-escuro” e pinta o céu com cores tais como “bronze” ou “ferro”*. Outra: na versão original da premiada animação de Walt Disney da história da Branca de Neve, o adjetivo “fairest” pode significar “a mais bela”, como normalmente é traduzida para português, ou a “mais justa” (ou “leal”), uma ambiguidade que confere outra dimensão igualmente interessante à fábula.

Daí a pergunta: O português é uma língua rica ou pobre?

Saramago veio em meu auxílio.

A sorte que tive em poder ver algumas páginas com as últimas correções à mão sobre páginas datilografadas dos seus livros, mostra-nos que o português é uma língua riquíssima, com vários matizes de palavras que são quase sinónimas sem o serem completamente.

Mostra-nos também o seu domínio da língua, procurando sempre a palavra mais precisa (ou mais ambígua), a busca da palavra perfeita para o efeito que nos quer provocar, para o modo como nos quer interpelar ou chamar à razão e à ação.

Quando nos propõe, disfarçadamente em jeito de “provérbio” «Se puderes olhar, vê. Se puderes ver, repara», Saramago recomenda-nos que voltemos a olhar, a ver, a observar, como nos dá a maioria das traduções noutras línguas que conheço.

Mas não foi essa a sua escolha. Escolheu “reparar”, que pode ser lida também no sentido de reparação dos erros, danos e injustiças.

Ao escolher a ambiguidade, estou certo de que Saramago escolheu convocar-nos para todas as nuances: Ver com mais atenção o que olhamos e, se pudermos ver, reparar, consertar, corrigir.

A Festa, que se aproxima, propõe-nos agir segundo as mesmas linhas: Perante a desumanidade que lentamente nos rodeia e que nos cega, devemos assumir e usar a nossa humanidade, fazer o que estiver ao nosso alcance para a reparar e limpar “cegueira branca, leitosa” que há quem confunda com luz.

Mais do que por generosidade ou por opção, por imperativo ético.

Porque não temos outra opção.

Feliz Natal!

*- O grego antigo tem várias palavras para os azuis tais como “glaukós” para azul-claro ou acinzentado, kýanos (azul) e kyáneos (azul-escuro), embora haja quem defenda que essas mesmas palavras se apliquem mais ao valor luminoso (claro-escuro) do que aos matizes dentro de uma cor.

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