O Funchal enche-se de luzes e a nossa região entra naquela que é, para muitos, a época mais bonita do ano. O Natal tem esse poder, de quase nos fazer esquecer, ainda que por breves dias, as preocupações. No entanto, existe um lugar onde a quadra natalícia não traz descanso nem tranquilidade: o Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira.
A época natalícia, tradicionalmente associada à celebração e ao convívio familiar, coincide de forma quase previsível com um período de elevada pressão sobre o sistema de saúde, que entra em estado de alerta máximo. Exige-se uma reflexão serena, mas clara, mesmo que tal incomode o leitor.
Muitas das macas que enchem os corredores do Hospital Dr. Nélio Mendonça, nesta altura do ano, não resultam exclusivamente de fatores imprevisíveis ou inevitáveis. Reconhecer esta realidade não visa a culpabilização, mas a promoção de um debate informado e construtivo, assente na evidência científica e no compromisso cívico, indispensável para garantir a sustentabilidade do Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira e para a proteção dos mais vulneráveis.
O mês de dezembro traz consigo um fenómeno há muito conhecido de quem trabalha no serviço de urgência: um verdadeiro “banquete da doença”. O excesso de sal, açúcar e álcool - pilares da nossa gastronomia festiva - transforma-se num gatilho perigoso para quem vive com doenças crónicas. O diabético que decide “abrir uma exceção” para mais uma fatia de bolo de mel, o hipertenso que ignora os avisos e exagera na carne salgada, o doente cardíaco que confunde cansaço como “normalidade da festa”.
As consequências acabam por aparecer, inevitavelmente, à porta dos serviços de urgência: descompensações, agravamentos e urgências que, em muitos casos, poderiam ter sido prevenidas, com moderação e com o devido acompanhamento atempado nos cuidados de saúde primários.
A urgência hospitalar tem como missão primordial a assistência rápida e diferenciada a quadros emergentes. Não deve, nem pode, constituir-se como refúgio para as consequências de comportamentos alimentares imprudentes, nem como resposta para situações clínicas que não colocam em risco imediato a vida humana.
Quando um cidadão com uma situação não urgente recorre a um hospital central, contribui, muitas vezes de forma não intencional, para um problema de maior escala, pois cada lugar ocupado sem indicação clínica adequada representa menos tempo e menos recursos para quem se encontra em risco vital, acentua o desgaste físico e emocional de profissionais já fortemente pressionados e aumenta o perigo para doentes com condições tempo-dependentes, que não podem, em circunstância alguma, aguardar por uma maca ocupada por quem não corre perigo de vida imediato.
Por outro lado, apesar de menos frequente, persiste no Natal uma realidade dura e eticamente inquietante: o denominado internamento social. Há idosos que continuam a ser levados aos serviços de urgência com queixas vagas, não por necessidade clínica objetiva, mas porque a sua presença em casa é percecionada como um obstáculo aos planos familiares, expondo, de forma silenciosa, as fragilidades de uma sociedade que se ilumina de luzes festivas, mas que falha no cumprimento do seu dever de cuidado e responsabilidade para com os mais velhos. Nenhuma decoração festiva consegue esconder a solidão de um Natal vivido numa enfermaria hospitalar.
Neste Natal, o meu apelo, enquanto profissional de saúde e cidadão, é simples: não permita que a ceia termine numa maca hospitalar, nem que a celebração da vida se converta num episódio de urgência clinicamente evitável.
O sistema de saúde não é ilimitado, e a sua capacidade de resposta e resiliência dependem, em larga medida, das escolhas informadas e conscientes de cada um de nós.
O melhor presente que pode oferecer a si próprio e ao Serviço de Saúde da Região Autónoma da Madeira é a responsabilidade. Modere os excessos e não esqueça: cuidar de si é também cuidar dos outros. Quando usamos os serviços certos no momento certo, ajudamos a garantir que ninguém fica sem resposta quando ela é realmente necessária.