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Artigo de Opinião

Doutorada em História / Investigadora

24/01/2024 08:00

Entre relatórios, imagens, relatos e notícias veiculadas pelos media, e outros afazeres profissionais, dei-me conta de um facto incontornável: o ano que terminou não foi igual para todas as crianças do mundo. Nem para as nossas. Mas, sobretudo para as crianças que permanecem em cenários de guerra, de conflitos armados. É por elas que hoje escrevo. Sentindo-me pequena, perante o tamanho do problema. Mas, escrevendo. Para quem pode fazer mais. E melhor. Por elas.

No mais recente relatório da UNICEF, intitulado “Caminhos para uma melhor proteção: Balanço da situação das crianças em estruturas de acolhimento na Europa e na Ásia Central”, divulgado a 18 deste mês, ficamos a saber que quase meio milhão de crianças, mais precisamente 456 mil crianças, entre 42 países da Europa e da Ásia Central, residem em instituições. Destes, Portugal é o país onde há mais crianças institucionalizadas. De acordo com o documento, 95% das crianças acolhidas ao abrigo do sistema de proteção do nosso país, estão a residir em acolhimento residencial. Comecei logo a tentar perceber o porquê de tantos porquês. Como é que podemos entender esta afirmação? Como é que podemos considerar aceitável que de um grupo de 42 países da Europa e da Ásia Central, Portugal seja o que tem mais crianças institucionalizadas? Com mais ou menos leituras ambíguas que acompanham esta temática. Independentemente de visões mais otimistas, outras nem tanto, politicamente falando, dei comigo a escrever para cada uma delas. Pode parecer uma banalidade, mas acredito mesmo que as crianças merecem o nosso melhor. O nosso maior empenho. São, de resto, o nosso futuro. Vivemos num tempo em que se torna necessária uma nova visão que leve a uma qualificação do sistema de promoção e proteção às nossas crianças, visto no seu todo. O próprio relatório da UNICEF refere a necessidade de que haja investimento e reforço em medidas preventivas, assim bem como a criação de alternativas ao acolhimento e que seja executado um plano de desinstitucionalização, progressivo e urgente. Não só para o caso português. Quando analisamos os dados dos restantes países envolvidos no relatório da UNICEF, depressa nos apercebemos que esta parece ser uma tendência da Europa Central, onde se verifica «a maior taxa de crianças em unidades de acolhimento residencial, com 294 por 100 mil crianças - quase o triplo da média mundial», existindo, nestes países, «uma dependência excessiva de acolhimento residencial em detrimento do acolhimento familiar», muito por conta do «aumento de crianças e jovens não acompanhados e separados que procuram asilo na Europa, nos últimos anos». Uma realidade que continuará no ano que se iniciou.

Ao aprofundarmos a leitura do documento “Caminhos para uma melhor proteção: Balanço da situação das crianças em estruturas de acolhimento na Europa e na Ásia Central”, no qual são citados «estudos sobre os impactos da separação familiar e da institucionalização no desenvolvimento e no bem-estar das crianças», há uma clara mensagem que salienta o facto de que «as crianças institucionalizadas em unidades de grande escala enfrentam frequentemente negligência emocional e taxas mais elevadas de abuso e exploração, o que as expõe a problemas de saúde mental, angústia psicológica e trauma». Mais, para o organismo das Nações Unidas, esta «dependência excessiva» do acolhimento residencial é preocupante, pois as crianças institucionalizadas em unidades de grande escala «podem ter dificuldade em desenvolver relações positivas ao longo da infância e idade adulta, sentindo-se isoladas e solitárias». As crianças que estão em acolhimento residencial, «sobretudo nos primeiros anos de vida, podem apresentar atrasos cognitivos, linguísticos e outros no desenvolvimento, e são mais propensas a entrar em conflito com a lei, perpetuando ciclos de institucionalização», afirma a UNICEF. O mesmo relatório chama ainda a atenção para os «desafios significativos» que as crianças com deficiência enfrentam, na medida em que se regista «maior probabilidade de serem colocadas em unidades de acolhimento residencial», quando comparadas com as crianças e jovens sem deficiência. Os dados do Relatório “Caracterização Anual da Situação de Acolhimento das Crianças e Jovens”, de 2022, apontam para o facto de que 14% das nossas crianças institucionalizadas, terem uma deficiência física ou mental. Números que merecem uma reflexão. De todos nós. Pela defesa de que se operem verdadeiras mudanças nos processos. Para um maior investimento e um reforço de medidas preventivas e alternativas ao acolhimento. Pelo debate sobre o paradoxo da institucionalização. Por um plano de desinstitucionalização progressivo e urgente. Pelas nossas crianças. Pelas suas expectativas.

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