MADEIRA Meteorologia

Artigo de Opinião

CONTOS INSULARADOS

30/10/2022 08:00

Os garotos tinham aquela cor de rua, dourado sujo e raramente se viam em branco imaculado. As pequenas, que se engalanavam em vestidos até aos pés, numa espécie de noivas em miniatura, para a primeira comunhão ou para a procissão da Festa do Senhor, tinham de ter cuidados acrescidos. Vestiam-se em cima de cobertores fofos estendidos no chão para o efeito e não saíam dali sem ser para a igreja e com cuidados redobrados e vários olhos de mãe em cima. "Não te sujes", ainda ecoa por estes dias na vereda afunilada, que dava e continua a dar acesso ao adro, onde se podia, por fim, respirar de alívio.

Mas no inverno era pior. Quando São Pedro escancarava a torneira dos céus e as nuvens pareciam imbuídas de um espírito de garotas da escola irritadas entre si, era o fim do mundo. Ou pelo menos parecia. Os homens vestiam os fatos impermeáveis amarelos por cima da roupa de trabalho e desapareciam no nevoeiro de enxadas da mão para abrir caminho á água, que rumava desenfreada de cabeça abaixo e arrastava o que estivesse à frente. As mulheres mais velhas, de lenço na cabeça, garantiam às mais novas que nunca tinham visto coisa assim. As árvores vinham ao chão, ou na totalidade ou em galhos, e havia sempre alguém que garantia que aquele castanheiro era um perigo e que se "estava mesmo a ver". As castanhas a apodrecer no chão.

A estrada de terra batida, que na verdade era um caminho, pouco mais que uma vereda, parecia uma ribeira a correr em regos improvisados pelos braços dos homens de fatos amarelos a estudar os prejuízos. Quando a tempestade amainava, fazia-se contas à vida, ao que a enxurrada levara, os campos alagados e o prejuízo na agricultura, mas que pelo menos ninguém se tinha magoado "graças a Deus". "Vão-se os anéis, ficam os dedos", garantiam os mais velhos, perante a incompreensão dos pequenos, que só queriam bom tempo para ir para a rua descarreirar. "Está tudo molhado, não podem ir brincar".

Numa dessas noites de tormenta, com adamastores a soprarem à porta, em ameaça mais concreta que velada, alguém sentenciou que não poderia ser e já não bastavam promessas feitas por quem aparecia de vez em quando com canetas e propaganda de voto. Juntou-se o povo e exigiu segurança para os seus. E assim foi. Alargou-se o caminho de terra batida, que se encheu de alcatrão, que esfolava mais os joelhos quando se jogava à bola nos dias bons. Fez uma festa e os homens de fato vieram cortar a fita. A vida de inverno melhorou e as noites de chuva passaram a ser mais calmas. Mas deixou de se ouvir, quando alguém perguntava pelos pequenos: "Estão no caminho a brincar".

OPINIÃO EM DESTAQUE
Coordenadora do Centro de Estudos de Bioética – Pólo Madeira
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