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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

28/07/2023 08:00

1 de janeiro de 2008. 23h34. Chega ao fim o primeiro dia do ano em que vou estar em Moçambique. De súbito, ela aí está - a viagem! O hemisfério sul, o Índico, África!

Fevereiro de 2008. Já passaram três semanas desde que cheguei à Alta Zambézia. Até agora, gastei apenas 40 euros, ou seja, quatro garrafas de vinho tinto para partilhar às refeições na missão, dois maços de cigarros ‘Safari’, um guarda-chuva, um pacotinho de sabão em pó, uma fotocópia do passaporte, e umas quantas cervejas ‘Laurentina’ e ‘Manica’ em vários bares da cidade.

Face ao euro, as coisas são baratas. Os alunos do 2.º ano, por exemplo, estão convencidos de que sou rico. Na sequência da habitual sessão diária de perguntas e respostas sobre a minha vida, quiseram saber quanto tinha custado a passagem de avião para Moçambique e eu disse que 1.500 euros. Fizeram a conversão para meticais e suspiraram com o valor: 52.500. A Europa fica à distância do impossível.

13 de fevereiro de 2008. Apoio ao estudo. Na sala estão apenas quatro alunos e estão mesmo dedicados ao estudo. Isso dá espaço à minha cabeça para vaguear. Recordo o domingo passado, quando as americanas do Corpo de Paz vieram almoçar à missão, a convite do superior. Eram quatro. Vivem em aldeias nos arredores da cidade.

Quando elas foram embora, o superior virou-se para mim e disse que era bom eu fazer amizade com as americanas. Coitadas, vão ficar aqui dois anos - disse ele. Vão precisar de companhia. Mais cedo ou mais tarde - dizia ele -, também vais ficar meio apaixonado por alguma mulher de cá. Não há problema, mas tem cuidado com as doenças e não dês muita confiança.

Fevereiro de 2008. Fim de semana. O nome da discoteca é Djambo, por causa do jamboeiro que há no meio do pátio. Fica na zona do mercado e é uma discoteca quase a céu aberto. Uma decadência assombrosa. Só lá estavam miúdos, adolescentes, rapazes e raparigas, todos bêbados e esfarrapados. Estive a dançar com eles. Fizeram uma grande festa. O DJ era do Gabão, disseram-me. Coisa boa! A música era moçambicana, explicaram-me. Do sul. Os miúdos sabiam as letras de cor. Que noite!

Março de 2008. Começou a chover às 16h30. Choveu, choveu, choveu. Às 17h30 anoiteceu à conta da escuridão provocada pela chuva. Sobreveio uma trovoada. Trovões brutais. E a chuva sem parar. Às 20h00, os relâmpagos clareavam a noite como súbitos amanheceres. E chovia, chovia, chovia. O pátio à frente da escola ficou encharcado. Quando saí de lá, a água chegava-me aos tornozelos.

Abril de 2008. No sábado à noite fui à discoteca Brisa, a melhor cá do sítio. Pus-me de cerveja na mão encostado ao balcão. Música ensurdecedora. As mulheres parecem-me todas lindas, brutalmente exóticas, brutalmente eróticas - no olhar, no gesto, na dança. De repente, vem uma e estende-me a mão e puxa o meu pobre ritmo branco para dentro da intensidade da dança negra… tanta sensualidade… black and white… a música… outra cerveja… olhares… roçares… suor… chuva na rua… chuva na noite…

É domingo. Abro os olhos e, antes de sentir o tempo e o espaço, sinto a ressaca. Meu Deus, são tão ruins as ressacas no Trópico de Capricórnio!

Lisboa, 15 de janeiro de 2009. 00h30. Vim passar o Natal a casa e agora regresso a Moçambique. Estou um pouco assustado, ou talvez agitado, ou se calhar excitado. No fundo, estou apenas triste. Sempre triste. Na ilha, antes de partir, a tia Teresa esboçou a súmula da minha alma: Tu não podes estar alegre porque és triste - disse ela.

Maputo, 22 de janeiro de 2009. Houve um tempo em que tudo era claro - o azul do céu e o azul do mar, o verde das árvores e o vermelho das fogueiras. Tudo era cor de telha, cor de terra. Houve um tempo em que tudo era cor de distância - a enorme distância das coisas ainda não adquiridas, a distância dos sonhos perdidos.

Gurúè, Alta Zambézia, 10 de agosto de 2009. No fim, o rapaz morre.

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