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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

8/12/2023 06:00

Quando eu vivia na Alta Zambézia, já lá vão mais de dez anos, costumava evocar os espíritos do meu passado e todos os meus antepassados para me fazerem companhia nos dias de chuva, pois havia alturas em que chovia sem parar durante semanas e eu passava a maior parte do tempo sozinho, fechado na cabana, a escrever desenfreadamente sobre a minha vida, que é o único espaço que conheço onde cabe o mundo inteiro e tudo o que nele existe, incluindo o nada e os fantasmas que me empurram para o abismo, bem como as inúmeras formas imateriais de ser que dele me salvam, e então eu escrevia sem parar e de tanto escrever dava comigo a falar com criaturas do além, como se fosse louco, esquizofrénico.

Eu dizia assim:

– É bom que estejas aqui.

Eu dizia:

– Quero partilhar contigo as maravilhas e os esplendores do lugar.

Depois esperava um pouco para perceber com quem estava a falar e, mesmo que não identificasse ninguém, continuava:

– Abandona lá os meus escritos, que pouco ou nada valem, abandona estas histórias esforçadas e ridículas que procuro recuperar de fogueiras antigas e vem ter comigo. Junta-te às massas de ar quente que se formam nesta época do ano sobre o Índico e acompanha-as na sua lenta e pesada deslocação para terra e atravessa com elas as planícies e as matas sem fim da Zambézia e vem abraçar os Montes Namuli, terra sagrada, e depois desfaz-te em chuva, em trovoada, em tempestade tropical. Ameaça-me com o teu poder e sente como a chuva faz estremecer o chão e como seu fragor sobre o telhado de zinco nos ensurdece e remete ao silêncio e ao medo.

Eu dizia assim:

– Agora, só nos resta esperar.

Rolava mais um dia de chuva sem parar e depois eu espreitava através da rede mosquiteira da janela e dizia assim:

– Vê como os girassóis nos contemplam tristes sob o peso da chuva, vê como nos olham tristes os pés de milho e as bananeiras e todas as árvores, vê como triste nos encara a paisagem inteira sob o peso cinzento da chuva.

Já passaram duas semanas.

Continua a chover.

– Depois há de vir o sol e o nevoeiro dissipar-se-á e o verde intenso há de avivar-se em milhares de tons, este verde infinito que nos cerca, e à noite a lua há de erguer-se gigante sobre as montanhas como num conto de fadas com princesas negras e as constelações do sul encher-nos-ão de um espanto primordial e revelador, como o espanto que me causaste quando te vi pela primeira vez, lembraste?

Às vezes, eu parava no meio da escrita e dizia assim:

– Afinal, com quem estou a falar? Meu Deus, com quem estou a falar?

E depois prosseguia com a ladainha alucinada:

– A luz azul do amanhecer traz-nos de volta o princípio de tudo e a luz rubra do crepúsculo faz-nos ver a proximidade da morte, por isso deixa lá as minhas histórias parvas, deixa lá estes tolos e desesperados exercícios literários e vem ter comigo, vem ter com a verdade dos meus dias, vem ter com a minha solidão – ela sempre esteve comigo, esta fina solidão, mas houve um tempo, antes de ti, muito antes de ti, em que não me feria assim de morte como agora, antes me tornava robusto, distante, puro, posso mesmo dizer imortal e nesse tempo eu cruzava o mundo em voo livre, exatamente como o faço agora, aqui, sentado na minha casa nas zonas altas de Santo António, a escrever desenfreadamente sobre a minha vida, enquanto nada acontece e os anos passam e eu envelheço e a chuva é tão pouca, tão leve, tão suave...

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