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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

20/09/2024 08:00

Os velhos não acreditam em nada. São dois velhos niilistas, já com mais de oitenta anos. Mas também não acreditam no niilismo. Não acreditam na filosofia. Não acreditam na política. Não acreditam na religião. Nem sequer acreditam na ciência. Os velhos não acreditam em nada do que gravita em torno dos elementos humanos e dizem que tudo é mentira, dizem que tudo são aparelhos de ginásio, ou seja, aparelhos destinados a operar modificações no indivíduo conforme o grau de vaidade de cada um. Às vezes, dizem os velhos, a vaidade é de tal modo indecente que o uso dos aparelhos se torna excessivo, desregrado, conduzindo à inevitável deformação do ser.

Os velhos dizem que o mundo se encontra atualmente num estado de amorfismo absoluto. Ou seja, tem uma musculatura de meter medo. O mundo apresenta-se sem graça e sem equilíbrio, dizem os velhos. O mundo tem os ombros demasiado largos, os braços tão grossos que parecem pernas e as pernas como bracinhos famintos, o tórax assemelha-se a uma montanha de pedra e as nádegas, de tão arrogantemente minúsculas e proeminentes, são ridículas, ao passo que a cintura é de inseto, a chamada cintura de vespa. O mundo tem uma cintura de vespa, dizem os velhos. O mundo tem uma aparência geral de borracha, dizem eles, de coisa que não cabe nos sítios, de coisa que transborda de inutilidade e porcaria.

São assim os filósofos e os políticos e os religiosos e até mesmo os cientistas – um bando de vaidosos do ginásio, dizem os velhos. Uma gentinha emproada e sem sentido, sempre suada, sempre a feder. Uma gentalha presumida que usa e abusa dos aparelhos de ginásio. Uma chusma de biltres que se desfigura de modo infame e abjeto, dizem os velhos, e, no entanto, é precisamente esse magote de lanzudos que conduz os destinos coletivos da Humanidade, pois claro, os filósofos, os políticos, os religiosos, os cientistas. Uma corja ignóbil, dizem os velhos, uma escumalha repugnante, uma ralé falsa e artificial, mas com direito ilimitado a púlpito e pedestal.

São deformadores profissionais, artistas da infâmia, senhorios do prédio do nojo, dizem os velhos, e o mundo inteiro fica a vê-los atuar como se fosse parvo, o mundo inteiro fica a contemplá-los de boca aberta como um idiota e vai ficando cada vez mais oco e balofo diante da pouca-vergonha dos políticos e da conversa fiada dos especialistas e da ordinarice manhosa dos religiosos e das descobertas alucinantes dos cientistas.

O mundo inteiro está irremediavelmente deformado, infame e abjeto, dizem os velhos, enquanto bebericam café com leite, um ainda de mãos firmes, outro já trémulo por causa da doença de Parkinson, e quem os ouve falar, quem sente o esforço que fazem para obter clareza no discurso, é levado a crer que um dia eles terão acreditado em tudo o que agora negam.

Sim, um dia, no princípio dos tempos, os velhos acreditaram na filosofia, na política, na religião, na ciência. Mesmo quando a intrepidez da juventude os impelia a dizer não, o facto é que eles acreditaram. Um dia, no amanhecer dos tempos, antes da amargura, os velhos acreditaram na poesia e nos ideais e nas esperanças. Um dia, na aurora dos tempos, antes da desilusão, os velhos foram felizes porque em tudo havia uma miríade de possibilidades, em tudo havia possibilidades inesgotáveis, possibilidades infinitas e, mais que tudo, havia o amor e o amor tinha nome, tinha forma, tinha alma – o amor era a mulher que ambos amavam.

Ela era a pedra angular, o templo sagrado. Ela era tudo o que se costuma dizer acerca da mulher amada, sobretudo em casos desesperados. Ela era tudo o que é ridículo dizer-se acerca da mulher amada em casos desesperados, tudo o que é vulgar dizer-se em casos desesperados, tudo o que se deve evitar dizer em casos desesperados e, ainda assim, continua-se a dizer, talvez doutra forma, mas sempre com o mesmo significado. Ela era a salvação. No entanto, morreu nova, muito nova, há tantos anos, quase no princípio da eternidade, e eles ficaram sozinhos para sempre a maldizer o mundo...

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