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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

4/08/2023 07:45

Houve um tempo - isto aconteceu há dezasseis anos - em que os meus amigos diziam que eu negava a vida, porque me viam sempre triste e sozinho, parado nos dias, somando horas de vazio, como se a minha alma fosse um deserto cada vez maior. Eles diziam que eu negava a vida, mas eu não aceitava a sentença e contra-atacava afirmando não haver sabedoria nas suas palavras, que eram espelhos de uma miséria profunda escondida no fundo dos seus corações. Depois, para reforçar, contava-lhes o que me tinha acontecido no ano anterior.

Primeiro, perdi um grande amor e chorei de cara lavada durante semanas a fio, situação que me afastou para muito longe, para tão longe, mas tão longe que a vista dos meus amigos já não me alcançava, mesmo estando à beira deles. Por isso, diziam que eu negava a vida, quando na verdade eu estava apenas a vivê-la na plenitude da perda.

Depois, vieram desencontros lamentáveis e possibilidades impossíveis de novos amores, de modo que estive na cama com mulheres que não queria e nem desejava, numa estranha e arrepiante soma de prazer, culpa e remorso, como se caminhasse descalço e arrancasse a pontapé as pedras da estrada.

Depois, fui sozinho em viagem ao Mali e tomei chá com gente esfarrapada e feliz junto ao rio Níger e vi o sol nascer e desaparecer na imensidão da planície africana e senti cheiros e sabores e emoções que nunca mais vou sentir e o meu espírito encheu-se de uma tranquilidade do tamanho de Deus e então eu soube, sem margem para qualquer dúvida, que mais cedo ou mais tarde haveria de voltar a África para uma longa estada - assim foi.

Depois, chegou o dia do meu aniversário e eu fui, outra vez sozinho, festejá-lo em Barcelona e brindei comigo mesmo num restaurante no Bairro Gótico e disse "Parabéns, Duarte, pelos teus 39 anos!" e corri a cidade de lés a lés e comprei uma camisola amarela com um touro negro estampado à frente e perdi-me na multidão como se fosse já o cidadão do mundo que sempre quisera ser desde miúdo, quando o universo ainda só principiava e acabava na fazenda do meu avô no Laranjal.

Depois, voltei a fumar e descobri o prazer de enrolar tabaco em papel de arroz e tornei a beber em excesso, reencontrando assim as manhãs de sombra e torpor e os dias de ressaca e arrependimento, mas também aqui soube, sem margem para qualquer dúvida, que isto fazia parte do processo e que mais cedo ou mais tarde haveria de me libertar do fumo e das bebedeiras - assim foi.

Depois, fiquei desempregado e o meu espírito transbordou de preocupações materiais como nunca antes sentira e finalmente percebi, sem margem para qualquer dúvida, que o espírito não perdura sem matéria e que a matéria dura para sempre sem espírito - esta é a lógica básica do horror que paira sobre a humanidade.

Depois, expulso do paraíso, fui viver sozinho a leste de todos os sonhos, num T0 no alto da Calçada de Santa Clara, e todos os dias lutava do lado da maravilha contra a solidão e chegava à noite exausto e vencido e caía na arena dos pesadelos, vergado, atormentado, até que a magia da aurora me despertava e aprontava novamente para a batalha.

Todas as vidas conduzem a um qualquer abismo antes da morte - dizia eu aos amigos. Lembra-te disto quando chegar a tua hora mais tenebrosa e nunca te julgues senhor do futuro, nem do acaso, nem do destino, pois são escorregadios como peixe vivo na mão e movediços como a lama dos pântanos debaixo dos pés.

Na verdade, aquele fora um ano difícil, mas eu cumprira o desafio supremo de qualquer ser humano - viver o momento com intensidade.

E tu - dizia eu aos amigos naquele tempo -, o que fizeste enquanto eu fiz tudo isto?

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