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Artigo de Opinião

16/02/2022 08:00

Passados quase cinco anos em Bruxelas, tive naquela noite o meu primeiro momento à madeleines de Proust. Aconteceu na primeira vez que decidi não ir passar a época festiva à Madeira.

Enquanto deitava as últimas gotas de uma poncha feita ao sabor do improviso, dei por mim a viajar até a esse lugar onde só o ilhéu vê liberdade na imensidão do mar. Naquela poncha regional lembrei-me de que tinha de adiar a ilha. Naquele momento, a minha tarefa era esperar.

Há várias formas de adiamento. Esperamos na sala do dentista, no aeroporto, numa fila de trânsito. Esperamos que nos atendam uma chamada, pelo riso após uma piada, pelo som da chave na porta. Estamos sempre à espera de alguma coisa. No entanto, esperar não é assim tão fácil como pode parecer.

Os telemóveis quebraram a barreira do tempo; comprimiram a espera; diminuíram os períodos de ausência. Aproximaram-nos do momento em que a nossa expectativa é correspondida.

Roland Barthes refere que a identidade de quem está apaixonado é fácil de descrever. É aquele que espera. Aquele que aguarda por novidades. Por uma mensagem. Por um gesto de carinho.

Na "Insustentável leveza do ser", magnum opus de Milan Kundera, Teresa espera constantemente por Tomás. Espera que ele mude. Espera que ele pare de a trair. Que reconheça a importância dela na sua vida. E, noite após noite, ela ainda o esperava. E a verdade é que, quando se espera, há sempre algo que dói.

Todavia, enquanto esperamos, tentamos minimizar esse peso com recurso às atividades mais triviais. Limpar a casa ou arrumar a pilha de papéis que cresce há meses em cima da secretária parecem atividades atrativas para quem aguarda, nessa tentativa - quase agoniante - de preencher um vazio mental.

Kafka, que nas suas obras mostrou o lado negro dos labirintos burocráticos, apontou também para a dificuldade que é esperar. Ele próprio manda-nos esperar para saber o que acontece a Gregor, ou aos dois K., tanto no "Processo", como no "Castelo". Todos esperam por resolver o seu problema. E aguardam. Adiam. E pelo meio? A impaciência. O vazio de tudo. O absurdo.

Eu, que me tinha em conta como alguém paciente, portanto, um às na arte de esperar, descobri que também não o sei fazer. Quem me conhece sabe que ando sempre com um livro debaixo do braço. Nada mais é do que uma bengala destinada a ocupar o lugar que deveria ser o da espera. Do tempo em que deveria apenas aguardar. Na posse de um livro os minutos diluem-se. Há um medo de estar a perder tempo. De não fazer nada de produtivo. No fundo, agora sinto que estou a roubar-me a mim próprio. Assim fazem todos aqueles que não sabem esperar.

Há uma certa dificuldade em viver no momento da espera. Estamos sempre preocupados com o passado, com os fantasmas de processos que não foram resolvidos. Ou então ansiosos de criar um futuro. De saber o que aí vem. De o antecipar. Mas isso não é mais do que um labirinto sentimental que nem o fio de Ariadne é capaz de salvar. É pelo medo de sermos atacados por esses pensamentos que nos refugiamos na fuga do tédio.

Devíamos ser ensinados a esperar. A não usar bengalas que nos ajudem a lidar com o vazio da ausência ou da falta de atenção. Ou mesmo do aborrecimento. Tenho sempre este pensamento quando vejo uma criança ao telemóvel na esplanada de um café, a ver um vídeo qualquer, só para não incomodar os adultos. Porque esperar é isso, é o suportar da ausência de algo ou de alguém, até mesmo daquilo que nunca foi. É na espera e na forma como lidamos com ela que mostramos o nosso verdadeiro eu. Se não aprendermos a esperar, quando é que seremos nós mesmos?

O mote de Pascal, utilizado até à exaustão durante a pandemia, continua a refletir a verdade: "A infelicidade de um Homem começa com a incapacidade de estar a sós, consigo mesmo, num quarto".

Em 2020, os portugueses navegavam na internet cerca de duas horas por dia ao telemóvel. Depois da pandemia, os números subiram. É um sinónimo desta nossa incapacidade de esperar, de lidar com o tédio. Há uma pressão social para estarmos a fazer algo de interessante, apaixonante, incrível. A viver uma experiência única. E, se possível, partilhá-la. Hoje, o velho ensaio mental de George Berkeley é transformado num "e se eu não partilhar nada das minhas experiências diárias, será que elas aconteceram?".

Numa noite como tantas outras em Bruxelas, apercebi-me que tinha de aguardar. De lidar com a ausência de algumas das pessoas mais importantes na minha vida. No ritmo lento do final do ano, percebi que sou daqueles que ainda não sabe esperar. Dos que têm saudades daquilo que ainda não são, mas também daquilo que já foram.

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