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Artigo de Opinião

CONTOS INSULARADOS

19/02/2023 06:00

O cheiro a bolo do caco invade a casa toda ainda pela manhã. É uma terça-feira de acordar diferente, sem escola. Não tarda é o cheiro a couves, batatas-doces, cenouras cozidas no lume do lar, com a carne de porco saída da salga, a despertar-nos os sentidos.

Já há alguma confusão na cozinha "velha" onde tudo se passa. A senhora Trindade, velha conhecida da casa e sempre presença na hora da azáfama - vindimas, mondas, colheitas, plantações -, vai tapando os "bolinhos" com uma toalha, que dobra e desdobra como se fosse um acordeão, enquanto sacode o excesso de farinha. Visto de longe, da janela da memória, parece um quadro, que dá pena nunca ter sido imortalizado numa tela, ou num poema. Talvez fosse mais acertado. Admiram o trabalho feito, enxotam-nos para longe, para não atrapalhar, comemos uma fatia de bolo quentinho com a manteiga a derreter. "É preciso cozer o inhame", adverte a mãe e divide tarefas, para onde somos também convocados. A massa das malassadas já levedou e começa o processo de finalização, numa frigideira de óleo a ferver, que lhes dá formas estranhas. Rimo-nos das saliências que parecem maminhas. A mãe manda-nos afastar do fogão, que o óleo é perigoso e salpica sem aviso. Convence-nos com facilidade a ir ver os trapos velhos que separou em cima da cama, que não atrapalhemos, que vamos tratar do nosso disfarce, que era uma coisa trapalhona, com roupas antigas antes de seguirem para "rolhas" no meio da terra, mas visto daqui, desta janela de onde espreito, parece um musical. Havia arte naqueles dias simples, nunca simplórios.

Há já alguma exasperação na voz da mãe, que já não quer saber das formas estranhas das malassadas e já não ri. "Depois das três começam a chegar os mascarados e é preciso ter um "docinho para os pequenos", adverte-nos, que já andámos a disputar camisas velhas do pai e casacos para parecermos senhores e senhoras naquele desfile pela casa da vizinhança e estamos de volta ao epicentro.

A mesa começa a ficar composta. O cozido de todas as terças de Carnaval em travessas, noutra ponta há pratos de malassadas simples, para serem decoradas a gosto do freguês, há outros com mel de cana e ainda há com açúcar e canela, na altura as minhas favoritas. A prima Zita traz sonhos para provar, trocam doces e galhardetes que as tuas é que são boas. Já estamos prontos a seguir romagem, no nosso Carnaval trapalhão, mas nada atrapalhado, onde o desafio é que não nos reconheçam e por isso vamos silenciosos, a engolir os risinhos, que ainda ecoam daqueles dias que são um quadro de felicidade imortalizado na gaveta da recordação.

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