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Artigo de Opinião

CONTOS INSULARADOS

25/12/2022 06:30

Era uma semana de nervos, com a barriga num maranho. Como se não bastasse a azáfama das "voltas da Festa" - apanhar e enfeitar o pinheiro, rezar para que as gambiarras não encrencassem com a humidade do inverno, fazer broas, arear o terreiro com sal azedo e ir ao musgo, o mais tarde possível, para estar viçoso na lapinha, ainda havia os ensaios, que chegavam a ser dois por dia, de manhã e de tarde.

Era, provavelmente, o segredo mais mal guardado da freguesia por aqueles dias que antecediam a Festa: "Quem seria o anjinho?!". O anjo da anunciação da Missa do Galo era figura de maior destaque que o próprio menino-jesus, a quem bastava nascer e manter-se nas palhas deitado, à espera de ser adorado pelos pastores, que era a freguesia inteira organizada por sítios em romagem no fim das celebrações. Às vezes era um boneco, outras - em tempos de presépio ao vivo - era um dos pequenos nascidos nesse ano. Fosse como fosse não lhe era esperado muito, só tinha de estar em condições de ser contemplado. Ao anjo era pedido uma cantoria, quase ladainha, que era suposto saber de cor e salteado e entoar com voz maviosa e quase celestial, sem engano ou desafino.

E se o primeiro momento era de alegria e orgulho, com o convite para tal lugar de destaque, os dias que se seguiam era de ansiedade, a roçar o sofrimento. Ou era a letra que se embrulhava no emaranhado dos versos, num desalinho de palavras, ou era o tom que fugia nos agudos e não encantava nos graves. Era uma montanha-russa emocional: Às vezes saía tudo bem no ensaio da manhã e no da tarde era o oposto. As "cantorinhas", com grande experiência na transformação de gerações de meninas desajeitadas em pequenos seres angelicais, raramente claudicavam na sua missão e mesmo quando a coisa parecia irremediavelmente perdida, mantinham a serenidade. Na véspera de Natal, eram elas quem davam o retoque final e encaixavam as asas, que tinham penas de verdade e pesavam mais do que deviam, sobre o vestido da primeira-comunhão quando ainda servia.

Depois era assumir o púlpito e encarar os rostos de sempre numa outra perspetiva. O coro ajudava a fazer as pausas e a recuperar o fôlego entre quadras. No fim, sobravam sorrisos e olhos embargados - pelo menos o da mãe e da avó, a transbordar de orgulho. Estou em crer, que eram quem mais sofria nesses dias.

Sandra Cardoso escreve ao domingo, de 2 em 2 semanas

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