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Artigo de Opinião

DE LETRA E CAL

28/11/2022 06:00

Leio Annie Ernaux: "Vivíamos com falta de tudo. Objetos, imagens, distrações, explicações acerca de nós e do mundo".

A Nobel da Literatura deste ano descreve no livro ’Os Anos’ a sua infância na Normandia e depois descreve a mudança desse mundo, onde faltava quase tudo, para um mundo de coisas novas e de novidades rápidas e sucessivas. E, como tantas vezes acontece com os livros, parece que não somos nós que os lemos, mas são os livros que nos leem a nós.

Confesso que me senti próxima, apesar de geograficamente e temporalmente distante. É que eu também vivi entre dois mundos. Aquele em que faltava quase tudo, até mesmo as explicações porque havia coisas das quais simplesmente não se falava e perguntas vedadas às crianças, especialmente se fossem raparigas.

Depois, de repente, este mundo parece ter escorregado para um qualquer buraco negro, juntamente com as avós e as tias velhas. No seu lugar, surgiu, com surpresa e velocidade, um mundo novo. Já não existia uma única loja onde se comprava quase tudo, com empregados mais velhos do que a mobília, já não existiam as velhas confeitarias de bolos de creme servidos em mesas de fórmica, já não existiam as mercearias de poeira e merceeiros de lápis atrás da orelha.

Na voragem do novo, tudo brilhava: as lojas modernas, as jovens lojistas orgulhosas do status renovado, o acesso a tudo, as novidades mais céleres do que a nossa vontade, criando necessidade onde antes ela não existia.

Mas, sobretudo, confesso que recebemos com entusiasmo o que de repente parecia ter mudado dentro da cabeça. Muitos dos pecados deixaram de o ser, a condenação era mais risível do que certa, os dogmas tremiam nas suas fundações e nós ganhávamos o direito de perguntar sobre tudo e de questionar o que antes nos era proibido por ser feio, pecado ou má educação.

Lembro-me do dia em que a minha mãe me ofereceu o livro com o sugestivo nome "De onde vêm os bebés". Profusamente ilustrado, meteu no esquecimento a minha avó a correr para a televisão sempre que surgiam cenas que considerava que nos deviam ser escondidas e nas quais se incluíam os beijos na boca, as cenas de sexo, mesmos que apenas implícitas, e o nascimento dos bebés como resultado das cenas proibidas. Todo esse mundo surgia preto no branco e a cores no livro que a minha mãe me fez chegar às mãos. No mundo subterrâneo dos mais velhos, tinha-se aberto uma porta que não voltaria a fechar-se.

Sobretudo as cabeças mudavam e erguiam-se acima do mofo e do medo, e nós felizes por testemunharmos a mudança e por termos o privilégio de conhecer os dois lados de um mesmo mundo. A esperança no futuro teve o peso e a leveza de todas essas conquistas. E, nós, ainda hoje, somos o produto desse viver entre dois mundos que foi a nossa infância e adolescência e que nos havia de marcar na vida adulta e colocar-nos a anos luz dos velhos e das velharias dos nossos primeiros anos.

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