MADEIRA Meteorologia

Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

16/09/2022 08:00

Agora que o verão chega ao fim, lembro-me do princípio do outono naquele tempo, antes de todos os males por vir, quando as primeiras chuvas marcavam o arranque das aulas, em outubro, e a minha mãe nos vestia, a mim e à minha irmã, com roupas quentes para nos proteger de um frio imaginário, um frio que não existia, pois a chuva limitava-se a levantar do chão uma humidade terrível, uma humidade que se tornava cada vez mais sufocante e pegajosa ao correr do dia, de maneira que aqueles casacos grossos, aqueles pulôveres de lã virgem, aquelas calças de bombazine enchiam-me de suor e comichão, afogueavam-me sem piedade, criavam-me bolhas nos pés, e eu ficava todo encharcado como se tivesse andado à chuva, quando na verdade ainda me encontrava a bordo do autocarro, um calhambeque azul e branco vindo do Trapiche que seguia em marcha lenta pelo Caminho de Santo António abaixo a abarrotar de gente, com as janelas todas fechadas, os vidros a transpirar, lá dentro uma profusão alucinante e vertiginosa de cheiros e sons e sentimentos que impunham outro tipo de viagens, estas de natureza imaterial, em que o meu espírito percorria distâncias inacreditáveis no vazio do ser e desembocava em lugares inexistentes dentro de mim, oceanos sem fim, até que alguém acionava a campainha e eu saltava na paragem certa, à beira de um beco, juntamente com outros miúdos que vinham das zonas altas, e fazia o percurso apertado entre paredes sombrias em ziguezague até ao largo da Cruz de Carvalho, onde ficava a escola.

Quando regressava a casa, trazia o excesso de roupa num braçado e subia as escadas dois a dois para fugir a mais uma chuvada que vinha já no Pico dos Barcelos, muito expedita e determinada, a encobrir o sol da hora do almoço, e sentia-me subitamente encantado com o perfume da terra molhada no poio e com o brilho das plantas lavadas no quintal e com o barulho altivo e vigoroso da água na ribeira e depois enfrentava de cabeça baixa a reprimenda da minha mãe:

- Ah rapaz, tu vais ficar doente!

Ou então:

- Ah rapaz, tu não tires o casaco com este tempo!

O tempo, porém, era mesmo quente e húmido e com ele surgiam enxames de moscas que sarapintavam de preto as superfícies exteriores da casa e à noite havia sempre mosquitos a zunir no quarto, perturbando o sono e motivando aguerridas lutas em que eu tentava esmagá-los contra as paredes, ou entre as palmas das mãos, ou contra o teto utilizando a almofada como projétil, mas a vitória nunca era objetiva, pois apesar das manchas de sangue aqui e ali nas paredes, também era certo que eu amanhecia cheio de picadas encarnadas nos braços e na cara.

Já o meu pai resolvia o problema com recurso ao imbatível Dum Dum, o inseticida mais usado naquela época, muito antes da morte da pureza e do seu significado, e infestava a casa com aquilo, da cozinha aos quartos de dormir, passando pela casa de banho, a sala e a loja. Às vezes a minha mãe ficava estuporada, porque ele fazia-o pouco antes da hora de dormir e depois era preciso esperar que o veneno se diluísse no ar.

- Os pequenos podem morrer envenenados - avisava.

Ele, contudo, adormecia como se nada fosse.

Sim, agora que o verão chega ao fim, lembro-me do princípio das coisas naquele tempo, muito antes do eclipse total da inocência, quando todos os venenos estavam ainda por vir, estes venenos que me matam dia a dia lentamente, estes venenos de natureza indefinida, venenos sem nome, venenos tão bem combinados, misturados e dissolvidos que até parecem ser sonho, esperança e promessa no fundo da minha alma, luz, ouro e claridade à superfície da pele, venenos cuja fórmula supera a de qualquer outra droga, lícita ou ilícita, por mais potente que seja - essas porcarias que só servem para afirmar e confirmar a tristeza e a estupidez do ser humano -, venenos tão intensamente voláteis e subtis que me levam a acreditar, in extremis, que não faço parte do mundo e, pior ainda, que a minha cabeça não faz parte do meu corpo.

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