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Artigo de Opinião

DE LETRA E CAL

21/02/2022 07:00

Eu e o meu irmão mais velho herdámos as sardas da pele branca do meu pai. Essas marcas começaram por ser pequenos pontos sorridentes na infância. Tinham a tendência de reagir à luz do sol e escurecer nos dias longos do verão, no decorrer dos quais a nossa pele respondia ao mundo como se houvesse uma eternidade secreta. Uma eternidade apenas acessível nesse tempo de vida quase plena. Nesse tempo de imortalidade de que são feitos os sonos calmos da infância, apenas surpreendidos pelas histórias que constroem os sonhos e os pesadelos. Aqueles pesadelos de estarmos a cair por um buraco sem fim, mas que depois nos garantiam, ao acordar, que não era cair, mas sim crescer. Era essa a segurança de sermos pequenos, não havia pesadelos que não pudessem ser transformados em sonhos pela palavra certa e pela luz do dia.

Crescíamos em queda. Uma queda que acrescentava centímetros às pernas, aos braços, ao tronco. E as sardas cresciam na nossa pele branca como que a marcar uma geografia do sol em nós, um mapa de estrelas terrenas.

Lembro-me de que na adolescência deitei mão a todas as crendices que garantiam uma solução para as sardas. Perseguia então o sonho de uma pele imaculada, sem o mapa de estrelas terrestres que já não serviam a minha vaidade a crescer.

Claro que não havia solução para uma herança de pele. Devemos crescer dentro da pele que nos calha. E crescer é afinal isto: aceitar a pele até que esta pára de crescer e nós atingimos a nossa forma final. Já chegamos, sem a ajuda de bancos, aos tampos das mesas, aos armários fora de mão, às prateleiras inacessíveis. A forma final passa da queda ao voo num ápice.

E, anos mais tarde, quando há muito deixámos de crescer e de cair nos sonhos, reparámos, com surpresa, que afinal continuámos a nossa metamorfose, não já em altura, mas nos desenhos que a pele continua a criar, com a mesma reação à luz. As sardas passam de pontos a círculos maiores, há sinais que nascem no silêncio dos dias, quase que para nos lembrarem que a nossa geografia continua um caminho sempre independente da nossa vontade. São costuras que se desenham na nossa pele por intervenção do tempo, sobre o qual não temos qualquer domínio. Há sempre algo de nós a crescer, a mudar de forma. Mudamos de pele como os bichos.

A vida torna-se mais visível nas sardas. Já não são os pontos sorridentes da infância. São mais umas esferas lúcidas a abrirem muita a boca perante o mundo, a vida. São cada vez mais pontos e vírgulas, como se a nossa história fosse agora uma pontuação mais lenta.

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