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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

7/01/2022 08:00

Vozes exaltadas chegam-me aos ouvidos vindas da tasca em frente, enquanto tento identificar que cheiro é este, um cheiro estranho. É um monte de gajos a falar alto, mas não percebo nada do que dizem, a não ser os palavrões. Devem estar todos bêbados, a discutir futebol ou outra coisa ainda mais profunda e redonda. Olho pelo retrovisor e vejo um velho a mijar atrás do carro que está estacionado atrás do meu. Puta que o pariu.

De repente, anoitece e eu continuo à espera.

A minha vida é uma longa espera. Sempre foi. Sempre será.

Já mal vejo o papel no qual escrevo. Por isso, fecho o caderno e opto por dedicar-me apenas ao pensamento - uma coisa bem lixada. Às vezes, dou comigo tão metido dentro dele que até me falta o ar e depois, ao cabo de muito tempo, percebo que, afinal, não estava a pensar em nada, raios me partam. Estava só a observar o vazio e a tentar compreender o modo como a matéria o preenche, como agora, perante este cheiro esquisito dentro do carro.

Olho outra vez pelo retrovisor. Na rua ao fundo passam carros e pessoas para baixo e para cima sem parar. Uma mulher de saltos altos e saia curta vai às gargalhadas, a falar ao telemóvel. Atrás dela vão dois idiotas bem vestidos, ambos de fato e gravata, ambos a tossir e a conversar, intercalando a tosse com a conversa, até que um escarra para o lado esquerdo e o outro logo a seguir para o lado direito. Filhos da puta. Um puto passa a correr de mochila às costas.

De facto, o carro cheira mal, um cheiro desusado, como se fosse lama, igual à lama da ribeira onde eu enterrava as mãos para apanhar sapos quando era miúdo. A água estava fria e cheirava sempre a terra podre, um odor macio e cada vez mais intenso à medida que eu remexia no fundo, enquanto o vento agitava os vimes e as canas vieiras atrás de mim, gerando um murmúrio impossível de compreender, até que, de repente, eu reconhecia uma palavra, o meu nome dito em voz alta, por exemplo, ou o nome de Deus na boca do Diabo, e voltava-me assustado, suspenso, olhos bem abertos, mas era apenas o vento na margem da ribeira. Não havia nada a temer.

Um homem e uma mulher passam na rua a conversar sobre dinheiro e sexo e amor. Ela diz assim:

- Dá-me esses 100 euros e eu faço-te um à maneira.

Ele ri alto. Abraça-a. Dá-lhe um beijo no pescoço. E responde:

- Meu amor!

Estavam só brincar. Via-se que eram íntimos, talvez marido e mulher. Aquilo era uma encenação para estimular os apetites.

Penso que o mau cheiro dentro carro resulta da sujidade das ruas por onde andei antes de chegar aqui, mas subitamente percebo que emana do saco de goiabas que trago no porta-bagagem, goiabas lá de cima, de casa do meu pai, do poio atrás do galinheiro. Eu gosto muito de goiabas - é um dos frutos que transportam a essência da minha infância - mas hoje o seu cheiro faz-me lembrar o da carne putrefacta, porque há dias comprei um bife da vazia, que vinha numa embalagem muito bonita, e quando abri aquilo, já com a frigideira ao lume, libertou-se dali um odor nauseabundo, horrível, que me provocou engulhos e me ficou gravado na memória como uma maldade.

De repente, o cheiro da carne podre faz-me recordar a última vez em que vi o meu pai, dentro do caixão, no cemitério de Santo António, e fico a pensar que esse será agora o cheiro da sua carne, tal como um dia será também o cheiro da minha carne, desta carne que pensa, desta carne que sente, desta carne que vos escreve e espera.

- Sacana! - Diz um gajo aos gritos na tasca em frente.

Outro responde no mesmo tom:

- Cabrão!

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