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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

15/10/2021 08:01

Houve um tempo em que eu me sentia um perfeito inútil. Andava por aí à toa, sem vontade para nada, sempre a pensar na morte. Para iludir o tempo e enganar a solidão, sentava-me nos cafés a escrever à mão em cadernos escolares. Anotava tudo o que me vinha à cabeça, como se cada ideia fosse rara e brilhante, mas o resultado desta atividade frenética consistia apenas num avolumar de páginas e páginas de texto caótico e anárquico, sem qualquer sentido ou fio condutor, sem história, sem alma, sem nada.

Seja como for, eu escrevia, escrevia, escrevia, até que um dia, uma mulher desconhecida, que estava sentada numa mesa perto da minha, meteu conversa e perguntou:

- Está a investigar ou a produzir?

Ela falava com determinação e segurança e a sua voz era como as que se ouve a dizer notícias na rádio logo de manhã - limpa, nítida.

- Estou a escrever um romance - respondi.

Era mentira, claro, porque eu não sou escritor, nem nada que se pareça, mas, de facto, disse-lhe que estava a escrever um romance e, de repente, veio-me à memória uma anedota que me contaram há muitos anos, assim:

Uma prostituta encontra uma colega de profissão e diz-lhe toda entusiasmada:

- Ontem estive com um intelectual.

A outra, que conhecia todo o tipo de homens menos aquele, fica muito surpreendida e pergunta:

- O que é um intelectual?

A amiga responde:

- É um homem como os outros, só que tem o pénis mais pequeno e mais mole.

Então, ao dizer-lhe que estava a escrever um romance, que é um trabalho intelectual, pensei que estava também a comunicar-lhe outra coisa e, por isso, sorri.

Ela, contudo, deve ter pensado que eu sorria por vaidade, mas não perdeu o interesse e perguntou:

- Qual é a história?

- É sobre um professor em África - revelei.

- Um professor negro?

- Não. Um professor branco.

- Sul-africano?

- Europeu.

- Um europeu que vai ser professor em África, é isso?

- Isso mesmo.

- E depois África agarra-o com os seus lugares-comuns, o espaço, o céu, a luz, os cheiros, e ele, coitadinho, descobre que não é possível mudar nada ali, nem uma única alma pode ser salva, a não ser a dele, a sua alma triste e solitária, não é assim? - Agora, havia uma evidente ponta de ironia no seu discurso. - Por fim, ele percebe o que toda a gente sabe desde sempre, mas em que ninguém acredita sem antes ter vivido lá: África é um continente perdido. Ontem, hoje e amanhã.

Ela era uma mulher madura e bonita e o seu perfume, fresco e muito suave, fez-me lembrar uma certa manhã distante, quando entrei pela primeira na escola da missão na Alta Zambézia, onde dei aulas durante três anos, e pela janela avistei o voo quebrado das andorinhas e o infinito até ao fundo do meu coração, como se tivesse nascido naquele preciso momento.

Pensei que ela era cheia de mundo e rendi-me:

- Vê-se que você conhece África.

Agora, foi a sua vez de sorrir.

E eu fiquei assim, como um perfeito inútil.

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