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Artigo de Opinião

ÀS VEZES VOO. ÀS VEZES CAIO

Jornalista

14/03/2021 08:00

Quando um corpo se perde de outro corpo, para que lado vai a cabeça? Onde fica a boca dentro do silêncio? Em que direção se rasga a pele até ao rio ou as mãos até ao caule da impossível flor?

Só se perde para sempre o que começa pelo medo. Uma asa fora do pássaro que se não viu morrer, a tua garganta sempre tão apartada da palavra. Eu por cima da leveza das tuas mãos pouca lúcidas de tão limpas.

O mundo desce pelo céu até ao inferno, dos rostos restam os olhos em espera, numa queda sem aparato. Nem sangue nem saliva, nem hálito nem arrepio. O hábito faz a vida, o hábito faz a morte. Vamos sem corpo, como quem esquece, como quem dorme para não morrer. E o medo é agora quente e tem braços, pernas e dentes. O medo está aqui e tem mais corpo do que nós, traz o torpor dos anjos terrenos, tremendo inteiro de chão e de portas. Neste tempo, tudo cessa e tudo seca. Há árvores em brasa à procura de um peito promontório onde crescer enquanto Deus morre; e sem sabermos escondemo-nos dentro da terra, vamos pelo escuro até ao nítido deserto de tudo. Talvez não saibamos já encontrar a escuridão, porque os dias perderam a luz e o tempo tornou-se todo igual, branco e demoníaco no fim afiado de um corpo, de todos os corpos que não resistem, desabados que estão sobre esta claríssima névoa que toca, ainda, o cume do cipreste. Então vai, insinua e arrisca com o clamor cicatrizado da juventude, o calor do espanto que foi outro dia. Outro.

A minha boca não pode mais, não pode de vez nem de vez em quando ser a tua, mesmo se sufocada pelas mãos de estranhos que não são afinal desconhecidos. É que uma boca pode matar. Tantas flores para nada, agora que nos deitamos de costas em cima da morte chamando-lhe liberdade. Não sei; serás ainda capaz de contaminar as mãos no meu corpo, não como antes, mas mais e mais profundamente, esquecendo o veneno que purifica até à poalha, até ao frémito que torna a habitar a garganta. Eu sei, a palavra é sobretudo um abalo, um cântico velho escavando a fome da pele, onde a há, onde a dor e o ardor podem ainda o poder de qualquer coisa. No silêncio. Depois, se um corpo parte e se esvai no fundo, já não nasce. Ou é como se não tivesse nunca nascido, ou não pudesse, no fim, deitar-se dentro de outro para morrer.

OPINIÃO EM DESTAQUE
Coordenadora do Centro de Estudos de Bioética – Pólo Madeira
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