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Artigo de Opinião

DE LETRA E CAL

25/01/2021 07:00

Há quase um ano que o mundo virou para dentro. Um dentro profundo que abala a vida, que abala o toque dessa vida que se fazia antes para fora. Um mundo subitamente mais pequeno, tão pequeno como o medo de respirar a plenos pulmões.

Respiramos sempre a medir o perigo, a tentar desviar o ar das partículas que nos dizem ser mortais, a tentar medir até onde a margem de segurança pode ser desenhada no invisível do espaço e no visível do pulmão amedrontado.

Agora o que vale não é conquistar a distância que fazia o mundo nosso, agora o que vale é medir a distância entre nós. Se gostas, afaste-te, não toques, não fales e principalmente não cantes, que o canto é uma arma ainda mais perigosa. Quanto mais se expandem os pulmões, mas o tiro é certeiro no peito da vítima mais próxima.

Não te mexas, deixa-te estar no mesmo lugar, imobilizado. Tudo parado neste jogo de sobrevivência, no qual o desafio é ser quase uma coisa imóvel no movimento e no sentir.

Quietos para fora e para dentro. Quietos para que o ar não se mova e transporte o perigo que não se vê, mas que está lá. Garantem.

A ordem anula o abraço, a pele, o calor. Subitamente gelados, quase que deixamos de viver para sobreviver. Quase que deixamos de sentir para não nos perdermos e não perdermos os outros.

Estranho tempo este que nos foi dado viver. Estranha paragem no mundo. Estranha paragem quase impossível de inventar fora da realidade que se impõe de forma tão brutal.

As ruas vazias à hora marcada, os parques vazios à hora marcada, o coração vazio à hora marcada. As mãos vazias sem hora marcada para se voltarem a encher.

A criança olha o parque infantil vazio. A criança diz: o vírus está ali! Ali onde? pergunto. Ali, no baloiço, responde a criança com a boca e o dedo que aprendeu a apontar o perigo. O dedo que antes assinalava o desejo e que agora só assinala o medo.

O medo tomou o lugar da criança no baloiço, tomou o lugar da alegria no baloiço. O medo respira no baloiço enquanto a infância entra em apneia prolongada.

As crianças já não gritam o monstro e o lobo das histórias. As crianças já só gritam o medo que entra não pela porta, mas pela televisão. As crianças já só gritam o medo. E, ao contrário dos monstros debaixo da cama, os adultos agora já acreditam na existência do medo, já não sabem, nem podem descansar as crianças, afastar o medo das crianças. Foi um sonho, já viste? Deixo a luz acesa.

Adultos e crianças precisam que lhes contem uma história de esperança, a história do dia em que o mundo se libertará do dentro e do medo. A história do regresso dos lobos e dos monstros. A história interminável da imaginação e não esta história interminável da realidade.

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