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Artigo de Opinião

silviamariamata@gmail.com

2/03/2021 08:03

Em dias assinalados, lá aparecia o Caçarola pelo nosso sítio. Vinha do lado do Caminho do Terço. Quase um país estrangeiro. Saía dos pinheiros, do lado da ribeira, a fronteira, entrava na vereda, arrastava-se pelo sítio fora de lés a lés, de cima a baixo. Era um homem enorme, muito maior do que o Pai Natal do meu livro da América. Era quase redondo como um pedregulho, capaz de esmagar qualquer um. Não sei bem, mas acho que ele vinha sempre vestido com um macacão cinzento e trazia um chapeuzito na cabeça, às vezes, um capote pardo para se abrigar do frio. Invariavelmente, vejo-o agora à minha frente, trazia uma saca às costas, que ele segurava pela boca unicamente com a mão direita em cima do ombro. Era nessa saca que eu iria um dia, se não comesse ou não bebesse o leite. Dentro da saca, que eu acreditava estar atafulhada de meninos biqueiros para comer, o que ele levava eram garrafas vazias, garrafas pequenas de laranjada, que ainda não havia as de litro, garrafas de cerveja coral e não sei se de mais alguma qualidade. Digamos que o Caçarola era uma espécie de vasilhame ambulante. Ele deveria fazer negócio com isso. Não sei. Sei que ele era temido pela malta da minha idade. Culpa das mães e das tias.

Um dia, eu ia a pé, de manhã cedo, para a escola do Caminho do Terço com minha prima do lado de meu pai. E íamos a conversar felizes e contentes pela estrada da Boa Nova para lá. Estava um ror de gente na paragem do Transval à espera do horário da Boa Nova, que virava no abica burros do Caminho do Palheiro à frente da Quinta dos Estanquinhos. O horário chegou, parou com um grande bafo quente, tomou as pessoas todas, o bilheteiro disse "Pode seguiriii" e a gente as duas a apreciar aquilo tudo. E o horário foi. Não ficou ninguém na paragem. Nisto, quando a gente ia começar a descer o Caminho do Terço, que era empedrado e a pique para cortarmos caminho, claro, que não era preciso dar aquela volta toda pela estrada da Boa Nova, onde fica o beco da Lindinha, salvo erro, sabes… onde está agora a Padaria Mariazinha, que a gente naquela altura também tinha cabeça para pensar e cortava caminho. Precisamente aí, ouvimos uns grandes berros atrás da gente. Ai! Ai! Ai! Foi assim que eu ouvi! E minha prima também. Olhámos para trás para ver o que era aquilo. E quem era? Meu Deus do céu! Era o Caçarola a gritar com a saca às costas. Se ele não trazia a saca às costas, eu vi a saca às costas. Mas trazia. Ele não corria. Ele rolava atrás da gente. Era o barulho dos passos dele, aquele pedregulho enorme, um trovão, uma chocalhada, talvez das garrafas, o barulho de um sino pesado pelo Caminho do Terço abaixo. Nunca corri tanto na minha vida nem quando ganhei uma medalha no Corta Mato no Batalhão. Nunca fugi de ninguém assim. E ele vinha sempre a correr desalmadamente atrás da gente e a gente corria, corria a gritar, a gritar, a gritar! Ai! Ai! Ai! E íamos de mãos dadas a puxar uma pela outra! Chegámos ao portal da porta da escola com as pernas a tremer, a tremer a tremer tanto que não havia maneira de parar de tremer. E queríamos entrar à força pela escola dentro com medo do Caçarola. Olhámos para trás, ele não estava. Onde andava aquele estupor? Voltar para casa pelo mesmo caminho, ai mãe do céu, como vai ser?

Já se sabe que chegámos a casa e contámos a minha mãe e a minha tia. Minha mãe contou a meu pai à noite e minha tia contou a meu tio à noite. Meu pai e meu tio conferenciaram-se e armaram-se a ir falar com o Caçarola. Sim, que a gente tinha tido um desgosto de morte. Aquilo não era para brincos!

À noite, quando meu pai chegou a casa, explicou o que ele tinha dito. Coitado do homem, dizia meu pai! Tinha perdido o horário, não havia outro senão não sei a que horas. Até aqui era verdade! E o resto? A carreira que ele deu atrás da gente para atafulhar a gente dentro da saca? Meu pai disse "Sim, ele correu para ver se agarrava o horário na paragem de baixo e cortou caminho pelo Caminho do Terço abaixo. Ele viu vocês a correr, mas pensava que era uma moda".

Mas afinal, o Caçarola agarra ou não agarra nos pequenos biqueiros para comer e atafulha ou não atafulha dentro da saca? Meu pai explicou. O Caçarola é amigo de crianças. Minha mãe calada. Que não faz nada meter medo do Caçarola para ela beber o leite. Meu pai a olhar para aquilo.

Volta e meia, lá vinha a conversa.

- Ai! Vem aí o Caçarola! Come para ele não te levar! Ou então, a tia Elvira, para a vereda: Vá-se embora, senhor Caçarola, que a menina vai comer tudo!

Cadelas a me enganar! Vale-me ser de fibra rija senão era uma traumatizada, como está agora na moda!

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