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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

2/02/2024 08:00

No meio desta grande confusão que começou na quarta-feira, dia vinte e quatro de janeiro do ano da graça de dois mil e vinte e quatro (todos sabem a que confusão me refiro, mas não a mencionarei, só para ter direito a uma nota de roda pé explicativa no caso de as minhas crónicas virem a ser compiladas e editadas em livro daqui a duzentos e cinquenta anos), no meio desta grande confusão, dizia eu, e à parte todas as desgraças de cortar a respiração que entretanto aconteceram a milhões de pessoas nos quatro cantos do mundo, o meu galo cambado morreu (ver crónica publicada no dia 12 de janeiro de 2024 para melhor entendimento – esta indicação também é importante, pois transmite a ideia de obra literária consistente, persistente e crescente).

O galo cambado morreu e, uma vez mais, o sentido da vida concretizou-se.

No meio da correria, que no meu caso decorre do facto de ser jornalista, fui todos os dias de salto às zonas altas de Santo António para ver a casa e os animais, o Tonecas e as galinhas, sempre a abrir, e na segunda-feira de manhã encontrei o galo morto, encostado numa parede do galinheiro, com o pescoço virado para trás, as penas ainda brilhantes e a crista pálida e fria, o corpo em absoluta rigidez cadavérica.

Eu andava a cuidar do galo desde o início do mês, quando ele apareceu cambado, provavelmente devido à sua avançada idade. Nos primeiros tempos, mesmo ajoujado no chão, o bicho comia com apetite, agitava as asas com altivez e até cantava com força. Todos os dias, eu punha-lhe milho, pão molhado, couves e folhas de alface à beira do bico, mas, assim que me ia embora, o outro galo, mais jovem e exuberante, ficava com tudo. De modo que o cambado foi enfraquecendo e então eu reorganizei o galinheiro, deixando-o sozinho, para se alimentar à vontade e sem pressa.

Agora, que morreu, lembro-me da sua antiga imponência e de ser ele o que mandava na capoeira, quando a população era composta por mais de 14 elementos (hoje está reduzida a quatro). Não era um galo alvoraçado, nunca o foi, e pouco a pouco familiarizou-se comigo, deixava que lhe tocasse e vinha comer na minha mão, ao contrário do outro, o mais novo, que sempre armou e continua a armar grande escarcéu por tudo e por nada, encarando-me como um inimigo perigoso, aquele que o vai matar.

Confesso que cheguei a ter pesadelos por causa do galo cambado e a sua condição de bicho inválido, derreado no chão do galinheiro após muitos anos de glória, avivou todas as imperfeições do meu ser dentro de mim, dentro do meu pensamento, coisa que me dificultava o sono ou fazia acordar a meio da noite sobressaltado, perturbado, como se, de repente, também eu fosse um galo cambado, ou como se tivesse culpa da sua invalidez.

Eu pensava:

Devo estar louco.

E este, digo-vos, é um pensamento assustador, sobretudo quando é a sério.

Devo estar louco, pensava eu, e depois vinha-me à memória os últimos dias de vida do meu pai e a dúvida se estive presente ao seu lado como ele merecia antes de morrer, e depois vinha-me à memória a imagem da minha tia Conceição, agora senil e residente num lar, a brigar comigo quando regressei de Moçambique e decidi deitar fora os montes de quinquilharia que ela acumulava em casa e ela dizia aos gritos que eu devia era mandar para o lixo os meus livros, que não valiam nada e só ocupavam espaço, e eu pensava que, de facto, é impossível dizer o que melhor vai contar a história da minha vida daqui a dois mil anos, se os meus livros ou as bugigangas da minha tia atulhadas na casa onde vivi toda a infância e adolescência, ainda hoje a casa dos meus sonhos, apesar da ruína, e depois vinha-me à memória a circunstância estrambólica de eu achar que a estrelícia tem qualquer coisa semelhante ao dobermann – é altiva, bela e parece agressiva – e então pensava eu, louco no meio da noite, que o mal, tal como o bem, não está entre nós, nunca está entre nós – o mal, tal como o bem, simplesmente está em nós.

E depois, no meio desta confusão, o galo cambado morreu e, uma vez mais, o sentido da vida concretizou-se...

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