MADEIRA Meteorologia

Artigo de Opinião

silviamariamata@gmail.com

19/10/2025 08:00

Pequenas, vocês que se “sente” aqui nos banquinhos todas à roda de mim que eu quero contar uma coisa a vocês que me sucedeu quando os meus pequenos eram pequenos. É uma coisa desconsolada e triste, mas ao mesmo tempo tem o seu encantamento, porque me lembro dela para sentir força, quando preciso de ânimo e de um empurrão para ir em frente.

Isto foi no ano de 2005, num domingo de manhã, tudo calmo em casa, a tia Elvira no seu cantinho sossegada, já minha amiga, sem as rabugências do costume, porque nessa altura era já eu que tratava dela, como se trata de uma mãe, apesar das poucas e boas desfeitas que ela me tinha feito, que eu nem conto nem digo a vocês, que isto tudo tem defeitos e eu também os tenho, de modo que está tudo perdoado para Deus Nosso Senhor também me perdoar as minhas falhas. Mas vocês que me “acredite”, se eu dizia uma para me defender, ela respondia-me duas e três daquelas pesadas, bem encaixadas, tudo estudado na ponta da língua afiada. Senhora de si, ela é que ditara as regras da boa convivialidade: “Tu vens para aqui morar, pode ser, podes ver televisão mais eu, mas comer e merda separados, não quero cá misturas dessas” - sentenciara ela, que era como quem dizia: a cozinha e a retrete separadas. Também sem pestanejar, avisou: “E o senhor, se eu brigar mais minha sobrinha, não se meta. Não há nada pior do que briga de mulher com homem pelo meio”.

Ora, voltando à narrativa, nesse tal domingo eu levantei-me cedo, pus uma panela ao lume, na minha cozinha nova, e fui a baixo ver minha mãe, que, como vocês sabem, estava na sua casinha entrevada desde aquela operação ao coração. Meu pai já não andava nas suas lides com a telefonia a tocar, como vocês bem se lembram, porque já era velhinho. Bem, eu vi que havia pão duro, por isso acendi o forno e pus-me a fazer torras para o pequeno almoço de minha mãe. O pão torrado molhado no café dava-lhe estalos pela garganta abaixo de tanto ela se regalar com aquele simples manjar. Dizia ela, vezes sem conta, que o avô Soisa, o pai, quando ela era pequena, trazia sacos de pão torrado da cidade e que ela gostava muito. Eu queria vê-la feliz fosse com o que fosse, e fiz-lhe a baboseirinha do pão torrado para que ela tivesse um gosto que fosse na vida.

Estava eu nestes diriges, vira torrada, abre fogão, fecha fogão, quando ouvi um grande barulhão atrás da casa, que parecia que vinha tudo abaixo. Pequenas, vocês não “acredite”, mas é verdade que o meu coração não me saltou por sorte. Pois era uma nuvem espessa de fumo negro a sair da minha casa. Era o povo das redondezas a gritar “lume, lume”. Eu fui ver o que era. Eram labaredas na minha cozinha. Na semana anterior, tinham-me roubado a pasta da escola com tanta coisa lá dentro e tinha saído no DN uma notícia: “Professora aflita procura pasta perdida”, agora o título da notícia só poderia ser “Professora distraída pega fogo à cozinha”. Aquilo era agora um mar de gente no meu terreiro, uns tinham pena de mim, mas outros brigavam comigo e davam-me lições, coisas assim “Ó pequena, tu isto”, “Ó pequena, tu aquilo”. Isto há sempre gente que sabe tudo, e ainda bem. Eu a me sentir o mais desprezível dos seres, tinha dentro de mim um desgosto de morte. O fogo apagado de mangueira, comecei logo nas limpezas.

No meio dessa confusão toda, já mais no fim, eu ouvi uns passos pesados a se arrastar no terreiro. Era meu pai. O meu coração deu um pulo. Eu não sabia o que ele ia dizer. Ele vinha todo fresco, todo arranjandinho na sua roupinha de andar por casa, parece que estou a vê-lo, e ele disse-me assim, depois de deitar a cabeça para averiguar a desgraça da minha cozinha:

- Está feio, minha filha, está feio, mas a minha filha não desanima, a minha filha não baixa os braços.

Todos se calaram e eu não precisei de ouvir mais nada.

OPINIÃO EM DESTAQUE
Enfermeira especialista em reabilitação e mestranda em Gestão de Empresas
11/12/2025 08:00

O inverno chega e com ele, a pressão sobre os pulmões e sobre o sistema de saúde. As infeções respiratórias agravam-se: gripe, bronquiolites, crises asmáticas...

Ver todos os artigos

88.8 RJM Rádio Jornal da Madeira RÁDIO 88.8 RJM MADEIRA

Ligue-se às Redes RJM 88.8FM

Emissão Online

Em direto

Ouvir Agora
INQUÉRITO / SONDAGEM

Concorda com a entrega do Prémio Nobel da Paz a Maria Corina Machado?

Enviar Resultados
RJM PODCASTS

Mais Lidas

Últimas