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Artigo de Opinião

8/11/2025 08:00

Só com a memória das coisas é possível perspectivar adequadamente o presente e o futuro. E esta assume-se sobretudo pela vivência, pela sua transmissão pessoal ou pelo estudo. É compreensível que os mais jovens não tenham memória de uma certa Madeira ou só retenham da escola uma noção longínqua e abstracta do tempo em que não havia liberdade. Já me causa estranheza e relutância, os que a viveram com penosidade ou aqueles cujos pais e avós lhes transmitiram uma memória ingrata, a entendam com nostalgia.

A Madeira foi sempre tida como um “cantinho do céu” pelo seu esplendor natural e tranquilidade. Mas nunca é demais relembrar que por detrás dessa fachada bela e idílica, morou uma realidade profundamente injusta.

O tempo em que a liberdade política e de expressão era cerceada, censurada nos jornais e nos livros, onde a denúncia de um qualquer bufo ou a acção da polícia política podia dar lugar a prisão, a sevícias e torturas. É evidente que o analfabetismo generalizado, o temor reverencial e a religiosidade resignada dos sans-culottes os resguardavam desses arremessos do regime. Mas o que dizer da escola que muitos frequentavam descalços e sem lanche, com um pequeno almoço de sopas de cavalo cansado, onde na melhor das hipóteses se tirava a quarta classe incompleta, para se entregar nos misteres miseráveis da agricultura à jornada ou de trolha da construção. Dos bairros de costaneiras de madeira nos socalcos das ribeiras, sem água potável e luz eléctrica, das furnas tomadas por habitação, dos cubículos em que viviam displicentemente dez ou mais pessoas, crianças que dormiam em gavetas de armários ou deambulavam andrajosas pela cidade na pedincha. Do banho semanal e das construções toscas contíguas aos casebres, onde numa tábua com um buraco escavado no meio se faziam as necessidades para uma fossa a céu aberto. Das refeições de milho cozido com cebola para a semana toda ou com uma cavala se tivesse em conta na praça. Do trabalho sem direitos mínimos garantidos ou a possibilidade de reivindicação ou descontentamento. Das moças do campo que a pretexto de um caridoso apadrinhamento se usavam como criadas de servir a tempo inteiro, à espera que um qualquer magala as viesse resgatar. Das rodas de bordado em que as mulheres davam cabo da vista a troco de migalhas. Do pobre do sábado que as senhoras abastadas mantinham, num espírito pio de conquista de um lugar no céu, com roupa velha, restos de comida e alguma moedinha ocasional. Dos cuidados de saúde que cabiam às misericórdias, aos chazinhos e aos acasos do destino e se morria cedo. Dos casais que sem esclarecimento ou oferta de contraceptivos, geravam dez ou mais filhos e em que lhes morria quase metade antes da idade adulta, numa atitude natural e conformada. Das mulheres que se finavam em abortos clandestinos. Das crianças que trabalhavam e dos filhos que não viam o pai obrigado a emigrar. Das moças casadas por procuração para escapar à pobreza. Dos servos da gleba explorados nos esquemas da colonia. Dos abusos sexuais dos filhos de ninguém. E milhentas outras iniquidades se poderiam relembrar.

A paz, a seriedade e a segurança que se alardeavam, escondiam nas manobras da propaganda oficial, a repressão generalizada e cruel, a corrupção surda, o abismo da desigualdade social, o desprezo pela cidadania e uma profunda e cínica desumanidade. Por mais viciada que uma democracia possa estar ou parecer, só ela, na liberdade de um estado de direito, na legalidade e transparência das suas cominações e na força de um voto de mudança, permite o seu assertivo realinhamento sem ferir os direitos básicos das pessoas e a sua humanidade.

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