MADEIRA Meteorologia

Artigo de Opinião

GATEIRA PARA A DIÁSPORA

6/07/2021 08:01

Assim, com maior ou menor dificuldade, queremos auxiliar a atravessar pontes, atravessando-as nós ao mesmo tempo. Tenho para mim que testes e entrevistas são sempre uma oportunidade para conhecer pessoas que, de outra maneira, talvez nunca conheceríamos, pelo que há que aproveitar esses momentos enquanto possibilidades de encontro (talvez até pudéssemos expandir, como o universo, esta ideia-motriz e pensar que seria bom se conduzíssemos as nossas vidas enquanto tais possibilidades). O J. tem uma história interessante - e assim costuma ser quando nos damos o tempo de escutar. Tinha, dentre outras coisas, trabalhado com requerentes de asilo em Portugal e isso também lhe dava outros horizontes de vida. Mesmo que não tivesse saído do país, o que não é o caso, o mundo veio bater-lhe à porta e o J. nunca se coibiu de a abrir ao outro e ao que de mais genuíno pode ter, a sua vulnerabilidade - uma ferida aberta - que se declina na sua fragilidade como baluarte da vontade de navegar por diante.

Neste contexto, é impossível deixar de mencionar que estreou na semana passada, em França, o documentário Midnight Traveler (Viajante da meia-noite, em tradução livre) do realizador afegão e pai - não necessariamente por esta ordem -, Hassan Fazili, que havia documentado a vida de um talibã que «desejava a paz». Este talibã viria a ser morto por outros talibãs e o realizador teve a sua cabeça e as da família postas a prémio tendo de fugir da sua casa, da sua pátria. Com os três telemóveis da família filmaram a fuga (Viajante da meia-noite), que se prolongou por 3 anos, e cujo destino seria a União Europeia, o que por si só devia interpelar-nos. Hassan depositava em nós o que tinha de mais precioso: a protecção da sua família. Não nos devemos esquecer disto nem desviar desta missão da qual um pai, um dia, pensou que estaríamos à altura. No início de Junho, a filha mais velha do realizador escreveu o seguinte na conta Instagram do seu pai: «Quando saímos do Afeganistão, eu tinha 8 anos e meio e a minha irmã […] 2 anos e meio. […] À medida que a minha irmã foi crescendo durante a nossa viagem, ela não tinha nenhuma memória de ter uma casa […]. Os nossos pais sempre nos diziam que […] quando chegássemos à Europa teríamos novamente uma casa. Eu não sabia o que seria ter uma casa na Alemanha […], mas para mim uma casa significava sentir-se segura e bem-vinda.» O título da publicação era «Casa é uma miragem».

No dia em que se celebrou a Região - cujo hino repete a palavra «trabalho» - e as Comunidades Madeirenses, despedimo-nos virtualmente, dado os tempos que correm, do J., enquanto equipa e companheiros de percurso. O J. teve de ir, pois valores mais altos se levantavam. Nas entrelinhas, percebi que partia sem rede de segurança, ou seja, sem trabalho à vista. Isto diz muito do J. e da convicção profunda de que muito mais do que um capataz o que vale é a entreajuda de «mulheres e crianças, cada um com o seu tijolo», que leva a que, com sete palmos de terra, se construa uma cabana. Quanto a mim, arremedo de tradutor, ainda ando à procura de onde surgem as palavras, parecendo-me que não se pode responder a esta pergunta sem se indagar sobre onde estamos em casa. Obrigado, J., por me teres ajudado nesta demanda.

OPINIÃO EM DESTAQUE

88.8 RJM Rádio Jornal da Madeira RÁDIO 88.8 RJM MADEIRA

Ligue-se às Redes RJM 88.8FM

Emissão Online

Em direto

Ouvir Agora
INQUÉRITO / SONDAGEM

Quem acha que vai governar a Região após as eleições de 26 de maio?

Enviar Resultados

Mais Lidas

Últimas