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Artigo de Opinião

CONTOS INSULARADOS

17/04/2022 08:10

A aparelhagem tocava alto e bom som fazendo estremecer as paredes da sala e ecoavam na Pedra Redonda. A música dos três CDs passíveis de ser colocados ao mesmo tempo no moderno aparelho, que fora prenda suada de Natal, ia-se repetindo uma atrás da outra. Não deixava de ser irónico que conseguíssemos ter todo o nosso património musical à época no mesmo dispositivo, enquanto a farta coleção de vinil jazia no móvel ultrapassado do gira-discos, perante a nossa indiferença.

Era um ritual de ostentação da nossa juventude moderninha todos os sábados, enquanto íamos cumprindo a vasta lista de tarefas domésticas a cargo, embora suspeite que os vizinhos nunca tivessem dado conta que a novinha aparelhagem permitia a loucura de ter três discos em simultâneo e que podíamos oscilar entre o rock português e o grunge de Seattle em segundos.

Mas se aos sábados, íamos recebendo repreensões e leves encolheres de ombro pelo som alto, à Sexta-Feira Santa era imperdoável a heresia de se ouvir música, quanto mais a "altos berros". Aí a coisa piava fininho ou nem piava de todo. Que era uma vergonha e uma total falta de respeito, tão má como comer carne por esses dias. E se, porventura, nos descuidássemos com uma fatia de fiambre a sorrir do frigorífico o melhor era guardar essa informação para nós, esperando que o castigo de tal ultraje não nos batesse à porta, mas com a frase e "Jesus está vendo" a ecoar na nossa cabeça.

Os homens regressavam da fazenda religiosamente antes das três da tarde e se alguém se atrevesse a meter alguma coisa à terra depois dessa hora, recebia os augúrios de que não ia dar nada, estava condenado ao insucesso agrícola e à fúria divina, que não era coisa que se arriscasse. Nem uma, nem outra.

Era dia de luto e a pouco e pouco, a tristeza e a melancolia iam tomando conta da tarde, com o sino a dobrar pesaroso por Ele e por nós todos. A Humanidade envergonhava-se das duas faltas. O silêncio tomava conta das paredes que já não estremeciam e as janelas abertas de par em par deixavam entrar a brisa da tarde que convidava à introspeção. A pouco e pouco a primavera entrava pela casa desgostosa e a mesa engalanava-se com uma toalha branca e uma jarra de cravos colhidos no jardim. Na cozinha, preparava-se o milagre da ressurreição entre claras em castelo e gemas batidas com açúcar. As favas já estavam impecavelmente temperadas em escabeche, mas era preciso esperar por domingo para ser Festa e para a música tocar outra vez. Abominava a Sexta-feira Santa com a suas restrições, proibições e ameaças castigadoras, embora perceba hoje a lição de espiritualidade desse rito de passagem anual que nos levava a dias melhores e que tanta falta nos fazem nestes tempos em que a Humanidade, que vive em cada um de nós, parece ter deixado de se embaraçar com os seus atos, falhas e omissões.

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