Amanhã, vamos contar aos nossos netos que a Humanidade se recusou a aprender com os erros de antes. Vamos dizer-lhes que os homens eram capazes de destruir e de matar, em nome de nada. Vamos falar-lhes de um tempo (o nosso) em que o mundo (capazes, os homens do mundo!) ficou suspenso. Amanhã, vamos dizer-lhes de mulheres que deixaram os homens na guerra e fugiram com os filhos para um qualquer lugar de paz. Vamos falar-lhes de mares-cemitérios e de botes que deram à costa, com a morte dentro, embrulhada em lençóis que haviam sido de esperança.

Amanhã, vamos falar de gente que, bem perto do fim, teve de deixar ir (ou ficar, que é, às vezes, também uma forma de se dar à morte) as sobras da vida inteira, o trabalho da vida inteira, as memórias da vida inteira. E vamos mostrar as imagens de êxodos como os de antigamente, de campos como os de antigamente, de comboios lotados de angústia, como os de antigamente. Vamos mostrar-lhes os olhos tristes das crianças que os pais puseram a salvo, os beijos de adeus de quem, se calhar, não se encontrará mais, as lágrimas, os gritos, o desalento.

Amanhã, vamos falar dos gritos de uma terra que queria dar à luz a primavera e dos destroços que impediam as flores de rasgar o chão.

Mas talvez possamos contar outra coisa. Que, apesar de tudo, havia coragem. E gente a defender o seu país. E países a abrir as portas a quem só trazia, nas mãos, o desespero. E famílias a abrir as suas casas. E artistas a entregar o melhor de si. E crianças a cantar nas ruas. E braços-abraços a querer ser casa e salvação.

Amanhã, talvez possamos contar aos nossos netos que, naquele tempo (o nosso), era primavera e a terra ensinava os homens que é sempre possível recomeçar.