A porta, quase sempre aberta, fecha-se pela última vez. O vazio de gente contrasta com as memórias que extravasam pelos recantos.

Os vasos de flores e plantas são reduzidos ao mínimo da sustentabilidade. Já não há quem olhe por elas e é preciso que sobrevivam quase por si. Fecha-se devagarinho, com receio de que com este gesto simbólico se encerrem as memórias em sítio inacessível.

Pela fresta da porta, quase fechada, ainda se sente o cheiro a canja do Natal, a pão fresco e à resina do pinheiro de Natal, que já não ocupará a parede da sala onde se instalava ano após anos, engalanado com os enfeites de sempre, sinos e bolas e fitas de todas as cores. Parece que se ouvem os estalidos da lenha a arder e a aquecer o forno onde se vão preparar as broas de mel para a Festa. Juntam-se todos, novos e velhos, mulheres e homens, pela noite de um dos primeiros dias de dezembro adentro. Entre um licor, vários ralhetes aos gulosos que não resistem à massa crua, uma cantoria natalícia, as bolinhas vão sendo moldadas. Quantas gargalhadas encerradas nas paredes da casa, cujas portas se fecham para sempre, com memórias de tempos e gente que já não voltam.

Inspira-se uma última vez a partir do terreiro onde jazem as orquídeas e sapatinhos que restam. O cheiro de um tabuleiro que se deixou tempo a mais no forno e as broas quase queimadas. Ordem para comer, o resto é para guardar para os dias melhores que se seguiriam. A alegria da preparação. O tio Cardoso lança uma das bombas de Natal mesmo junto à cozinha, provocando um susto e grito coletivo. Era o homem das partidas, a maior das quais a sua própria, cedo de mais. "Seu peste", gritava a avó, sustendo o riso nervoso.

Tudo se encerra com a chave que roda. As paredes da História, dos dias de riso e lágrimas. O edifício que claudica nos alicerces e que terá de continuar longe dali, onde os que sobrevivem estiverem. Ninguém nos ensina a fazer luto de casa.