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Artigo de Opinião

CONTOS INSULARADOS

21/02/2021 06:30

Ficou vidrada no tom de pele. Parecia de cetim delicado, pálido, mas com toques de carmim nas bochechas como se fosse uma boneca. Os cabelos, escondidos debaixo do véu, davam-lhe um ar ainda mais místico. Mas o que a deixou boquiaberta foi a voz, como se viesse do céu. Nunca tinha ido ao céu, mas era assim que imaginava que os anjos falavam.

Ainda não tinha seis anos, mas toda a ânsia de os completar. Mais do que a chegada do Pai Natal, esperava ter uma mão cheia de anos e mais um para ir para a escola, como se fosse um passaporte para outra vida.

Era penoso ver as primas mais velhas saírem de manhã e ela deixar-se ficar por ali o dia inteiro sem nada para fazer, para além de copiar as vogais que a mãe lhe escrevia num caderninho a ver a calava.

- Vai brincar, implorava a progenitora, a braços com o bebé que, entretanto, chegara. Tentava distraí-la com contas simples, que completava com um suspiro, exigindo sempre mais, para desespero dos pais, que só queriam que sossegasse.

- Sou a irmã Teresa, diretora desta escola.

E ela que raramente se acanhava, acabrunhou-se, embalada pela voz que parecia o mar calmo a enrolar-se no calhau, num fim de dia de verão. Melódica, tranquila, mas segura e assertiva.

- A menina é esperta, diagnosticou, abrindo a porta a todos os sonhos que começariam em setembro, já com os seis anos completos. Parecia que lhe tinha sido entregue a chave de uma mansão de doces, apesar de ter recebido, com entusiasmo é certo, apenas uma lista de regras: Rezamos todas as manhãs, todos os meninos usam batas da mesma cor, branco e azul aos quadradinhos e o lanche é pão com manteiga, com marmelada uma vez por semana.

Saiu com borboletas na barriga e durante semanas não parou de falar daquela mulher mística, com voz de maresia e promessas de futuro, que podia ser o que quisesse.

Quando chegou ao primeiro dia de aulas e percebeu que lhe tinha calhado a diretora como professora, sabia que lhe saído a sorte grande. A forma como fazia para chegar a todas as pedras do calhau, com suavidade e melodia, valorizando o esforço, premiado com estrelinhas nos cadernos, mas sempre incentivando quem se atrasava na aprendizagem. E com um enorme sentido de justiça, ao serviço dos mais desprotegidos.

Garantiu sempre que poderia chegar onde quisesse e quando se encontravam, anos depois, olhava-a como nessa primeira vez. Via a menina de quase seis anos e os seus sonhos todos. E com a tranquilidade, serenidade e desapego dos que têm a grandeza de tocar os outros de uma forma tão especial, discreta e abnegada, assegurava que as aptidões estavam lá desde aquelas composições sobre a primavera dos verdes anos. Achava estranho que se lembrasse destes textos, mas não contestava e aceitava o orgulho que depositava numa das suas sementes que via a dar frutos. E foram tantas com essa sorte.

Ficou-lhe dessa longínqua primeira classe, entre tantas coisas, a vontade de trabalhar sempre para a estrelinha. E nunca desistir de tentar

(Obrigada. Que descanse em paz, querida Irmã Teresa.)

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