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Artigo de Opinião

DE LETRA E CAL

5/08/2024 08:00

Há coisas que fazem parte da nossa memória coletiva, mas que também se inserem na nossa memória privada e no que ela instaura de ligações e afetos. Os Jogos Olímpicos fazem parte dessa categoria de memórias.

A mim, levam-me para o verão do início dos anos oitenta. Ainda catraia, na casa das três laranjeiras. A casa rodeada do carinho dos meus, dos domingos quentes e longos, como se os dias se derretem-se nas horas e escoassem devagar por todos os relógios e pela nossa pele a mudar de cor com o sol.

À mesa ainda estavam todos vivos e a morte era mais uma ficção da qual não tínhamos provas reais. Nem sequer reparávamos nos cabelos brancos e nas rugas que se instalavam devagar nas caras que conhecíamos. Era tudo felicidade por dentro dos dias.

Como estão todos e mais alguns, penso que fosse domingo. Tenho quase a certeza de que era domingo. Havia a quietude, a lentidão, as desoras para a refeição. Havia talvez um bolo de bolacha no frigorífico. A anunciá-lo estava a laranjada em cima da mesa, ainda com aquele rótulo rudimentar antes do design e das campanhas elaboradas.

Havia a toalha das visitas, e a louça mais requintada. Havia o cheiro do arroz de casa e da galinha a assar.

E, no meio de toda esta felicidade, havia os Jogos Olímpicos e o Misha. O ursinho castanho mascote dos jogos de Moscovo. O ursinho que centrava todas as nossas atenções e as poupanças do mealheiro. Havíamos de ter um urso daqueles, comprado com os trocos do pai, que eram distribuídos aos sábados.

Foi nesse ano que aprendi a nadar, foi nesse ano que fui mordida pelo Fly, o cão temperamental da casa, que tanto abanava o rabo como testava os dentes, mas pernas de quem se atrevesse a passar os seus limites. Não perdi o meu amor pelos cães, nem me nasceu qualquer fobia. Talvez tivesse sido nesse ano que comecei a crescer. Muitas coisas iriam acontecer depois desses jogos Olímpicos e do Misha.

Não me lembro se alguma vez conseguimos comprar o urso de Moscovo com as moedas do mealheiro, mas lembro-me que tivemos cadernos e estojos. Lembro-me que nos fizemos à escola com mais afinco. Lembro-me que depois alguns começaram a desaparecer e aprendemos alguma realidade.

Mas é a memória dessa felicidade dos primeiros Jogos Olímpicos de que tenho memória que regressa quando mais uns jogos acontecem, como agora em Paris.

De repente, regressa a casa e os que nela habitavam. Regressa a memória do bolo de bolacha e da laranjada. Os cheiros da cozinha. Regressa o fim do almoço e alguém a dizer para ir descansar na sala com o tito e ver com ele os Jogos. Regressa a minha teimosia de catraia e a desobediência. Saio pela porta da cozinha para o quintal. Ignoro que o Fly está debaixo do carro estacionado a comer um osso (era o tempo em que os cães comiam ossos). Passo por ele sem o ver, ele lança-se aos meus pés e morde. Ficou uma cicatriz na perna esquerda que ainda hoje é visível. Mas fiz as pazes com aquele cão e com todos os outros depois dele.

E, sempre que os Jogos Olímpicos regressam, regressam todos na minha memória e regressa a felicidade de um tempo que já não volta, ao contrário dos jogos. E com eles o campeonato e a disputa das minhas memórias por um lugar que já não existe.

OPINIÃO EM DESTAQUE
Coordenadora do Centro de Estudos de Bioética – Pólo Madeira
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