MADEIRA Meteorologia

Artigo de Opinião

HISTÓRIAS DA MINHA HISTÓRIA

15/04/2021 08:02

Em plena pandemia, e um tanto perdidos em busca de soluções que dela nos livrem, sabemo-nos todos potenciais propagadores do vírus. Queremos detetar os infetados e, para tal, passámos a deixar-nos rastrear por medidores de temperatura e testes de vários tipos. Com a mesma finalidade, de vez em quando, surgem ideias mais incomuns, como aplicações delatoras para telemóvel ou esta de que agora alguém se lembrou: que os cães, com os seus dotes olfativos, podem ser funcionários, não sei se do governo se do serviço de saúde, capazes de farejar os infelizes portadores do vírus.

Ora vejamos quantas vantagens: sem auferir salário — uma guloseima, como compensação, por cada doente identificado é quanto lhes basta —, e sem reivindicações sindicais sobre regalias ou horário de trabalho. A sua formação é curta. Segundo a agência Reuters, na Alemanha bastam oito dias de aulas e o cão consegue um sucesso de 94% de farejadelas acertadas. Em Helsínquia, não referem o tempo de escolaridade, e garantem quase 100% de fiabilidade (fica por especificar o conceito de quase). E não esqueçamos a vantagem final: quando os seus serviços deixarem de ser necessários, os fiéis trabalhadores não exigirão qualquer subvenção vitalícia ou sequer uma magra pensão. Aceitarão, não sem surpresa e incompreensão silenciosas, permanecer sobre o chão frio de uma qualquer jaula para onde os atirem e onde talvez até se esqueçam de os alimentar. Por detrás das grades, esperarão cada dia do resto das suas vidas que o tratador, em quem confiam, os venha buscar para desempenhar a tarefa para a qual os preparou. Mas esse é um futuro sobre o qual nenhum tratador, o único a auferir salário nesta formação, quer pensar. No presente, o que pretendem é colocar esses funcionários peludos nos aeroportos. Sem necessidade de luvas, máscara cirúrgica, batas ou toucas, receberão cada viajante — naturalmente em compartimentos individualizados —, com uma atenta farejadela e darão o veredito sobre o seu estado covídico. Os positivos seguirão para o gabinete de testagem, onde humanos avaliarão a justeza da decisão canina. (Não encontrei qualquer referência ou preocupação pelos "6%" que escapam aos canídeos alemães ou aos "quase" de Helsínquia. Imagino que seguirão aconchegadinhos em courtesy buses, rumo ao hotel, onde se instalarão com algum clandestino pulmonar pronto a saltar para novos hospedeiros).

Novas dos cães farejadores chegaram à Madeira e as propostas não se fizeram esperar: toca a formar a bicharada! Não sei se os cães madeirenses serão mais ou menos lestos a aprender que os alemães ou se as metodologias dos tratadores de cá serão tão convincentes, mas esse é detalhe de somenos importância. O entusiasmo está no ar. Num debate da televisão regional, jornalistas defendem a ideia:

— Já viram o que poderíamos poupar! — exclamam, com o deslumbramento de quem viu, ao vivo, o pioneiro ovo de Colombo. Eu pasmo e não consigo evitar a angústia.

Há um ano, quando o vírus se manifestou, houve quem temesse que os animais domésticos o propagassem. Foi argumento a que muitos humanos se agarraram para justificar, à sua consciência pesada, o abandono, só acalmado por apelos e insistentes esclarecimentos de veterinários. Agora, acreditam que podem ser salvos do contágio pelos cães. "Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades" — como dizia o poeta — e agora, a vontade é investir, sabe-se lá quanto, na formação de farejadores para o aeroporto.

Desculpem-me a ironia, mas apetece-me perguntar: porquê só no aeroporto? Que tal convocar os cães dos canis, recolher os desgraçados que vagueiam abandonados pelas ruas, famintos pelas serras da Ilha ou resgatar os que vivem em cantos dos quintais, acorrentados a latões ou casotas em ruina, deitados sobre dejetos. Uma boa ideia, não vos parece? Já imaginaram um cachorro em cada esplanada, em cada museu, em cada teatro, em cada autocarro, à porta de cada sala de aula …

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