Nasci na Madeira, um cantinho no céu, isolado para o bom e para o mau. Longe das guerras, com acesso a educação, saúde e perspetiva de futuro. Mas no mesmo instante, noutro ponto do globo, uma criança nascia em Gaza. Não teve a mesma sorte. Cresceu cercada, sob bombardeamentos e a única diferença entre nós é o código postal.
Para pôr as coisas em perspetiva, Gaza em 2023 tinha cerca de 2,3 milhões de habitantes, que é quase nove vezes a população da Madeira. E em termos de área, o nosso cantinho no céu tem cerca do dobro da área de Gaza. Até 28 de setembro de 2025, morreram lá cerca de 66 mil pessoas. Para ter uma noção do impacto, seria como se mais de 26 mil pessoas na Madeira, ou seja mais de 10% da nossa população, tivessem morrido.
É neste contraste de destinos que se percebe a importância do gesto que Portugal deu recentemente: o reconhecimento oficial do Estado da Palestina.
Durante demasiado tempo, a Palestina foi mantida num limbo diplomático, como se a sua identidade estivesse sempre em discussão. Enquanto isso, milhões vivem sob ocupação, deslocados, sem acesso a direitos básicos que qualquer um de nós toma por garantidos. Reconhecer a Palestina é reconhecer essa humanidade negada.
Desde outubro de 2023, a maioria das vítimas foram mulheres e crianças. Mais de 167 mil pessoas ficaram feridas. Famílias inteiras foram dizimadas, bairros destruídos. Para além das perdas humanas, a fome alastrou: mais de 500 mil vivem em situação de fome extrema.
É impossível olhar para estas realidades sem sentir um nó no estômago. A única coisa que separa o meu jantar da fome deles é uma fronteira. Não sou melhor do que eles. Simplesmente não nasci lá. A vida é uma lotaria de códigos postais. E eles receberam Gaza.
Por isso, sim, Portugal demorou demasiado tempo a dar este passo. Cada ano de hesitação significou mais mortes, sofrimento e silêncio cúmplice. Mas mais vale tarde do que nunca. Mesmo que não mude a realidade num dia, este reconhecimento tem peso político e moral enorme. É dizer ao mundo que a Palestina não é um “dossiê”: é um Estado, com um povo que merece viver com dignidade.
A Europa não pode ficar de fora. Tem responsabilidade acrescida. Se conseguimos transformar inimigos em parceiros e fronteiras em pontes, não podemos aceitar que outros povos fiquem condenados a viver sem horizonte.
Só haverá futuro seguro para a região quando a Palestina tiver pleno direito à sua existência. Portugal, ao juntar-se a outros países europeus, assumiu o lado certo da História.
Contudo, o verdadeiro teste será se este reconhecimento se traduz em ação. Cada dia sem mudança significa mais crianças sem futuro, mais famílias destruídas, mais vidas perdidas. Estamos a tornar-nos imunes ao sofrimento porque vemos demasiado, todos os dias, imagens de morte e destruição. Mas a imunidade não pode justificar a indiferença. Temos de continuar a lutar, a denunciar, a exigir ação.
Se a Europa acredita no poder do diálogo e da diplomacia, então tem de o provar. Não com comunicados, mas com pressão real, solidariedade efetiva e escolhas políticas que ponham a vida acima da geopolítica.
No fundo, trata-se disto... Ou acreditamos que todas as crianças, seja em Gaza, Telavive ou na Madeira, merecem crescer com a mesma promessa de paz ou aceitamos viver anestesiados perante o sofrimento alheio. Se aceitarmos, estaremos a falhar não só à Palestina, mas à própria ideia de humanidade.