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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

26/03/2021 08:04

Esta é a ducentésima nonagésima crónica que escrevo e, tal como aconteceu com as outras, também aqui vou descobrir erros depois da sua publicação, erros a todos os níveis, na forma e no conteúdo e na alma acima de tudo, e, como sempre, vou concluir que também esta, tal como todas as outras, não tem valor nenhum. São palavras ocas lançadas ao vento que sopra no papel onde foram impressas e no universo digital onde se perdem e diluem e afogam. No fim, o que sobra é o silêncio do autor e a sua dor. Nada mais, a não ser os erros que o texto comporta. Esses ficam para sempre.

Tendo escrito isto, parei para fazer um telefonema. Fui até à varanda, a falar ao telemóvel. Estava vento e frio, o mar picado, o céu azul e as pessoas na rua seguiam o seu destino sem fazer caso do dia, claro, porque a vida é mais do que a hora que passa, é sempre muito mais do que a hora que passa - a vida é tudo o que fica depois.

Tornei a sentar-me diante do computador. Reli o primeiro parágrafo e o primeiro impulso foi apagá-lo imediatamente. Detestei-o. Tudo nele me pareceu ridículo e pretensioso, uma pobreza de meia tigela, o ritmo e a filosofia, a estrutura e a poesia, o léxico e a gramática, e eu quis matá-lo com toda a minha força, matando também a vaidade e a arrogância que há em mim quando me ponho a escrever e, sobretudo, quis matar os erros que deixo transparecer nas linhas e nas entrelinhas.

Da primeira à última crónica, todas comportam erros que só deteto após a publicação. Às vezes, são erros de sintaxe, erros de concordância, palavras mal utilizadas - "foi" em vez de "fui", "aura" em vez de "áurea", "estreme" em vez de "estremece", "chilenos" em vez de "chinelos" - ou então artigos e preposições que não aparecem no devido lugar, ou pronomes desnecessários, ou palavras que estão a mais e geram cacofonias. O excesso de advérbios, de adjetivos e de pontuação também é pecado comum, bem como frases demasiado extensas e complexas, embora muitas vezes o faça de propósito, para embalar e encantar o leitor e fazê-lo naufragar no texto, desistir, lutar, desesperar, voltar.

Volta e meia, ocorre-me um ou outro erro ortográfico, coisa que para mim constitui a vergonha das vergonhas de quem se atreve a escrever, seja lá o que for, a lista das compras, uma mensagem no telemóvel, uma publicação nas redes sociais, não interessa o quê - escrever com erros ortográficos é uma tristeza, uma enorme vergonha, além de que menoriza a nobreza das grandes ideias e acentua a mesquinhez das pequenas. Eu conheço bem essa vergonha.

Larguei o texto da mão e saí de casa, fui tratar dos meus afazeres, viver a minha vidinha de assalariado - graças a Deus tenho salário - o sal da vida - e depois voltei arrasado, já depois do recolher obrigatório, em transgressão, cheio de pensamentos pesados e inúteis. Sentei-me diante do computador outra vez, li os cinco parágrafos anteriores e apeteceu-me destruí-los.

Sabem, o grande desafio da escrita é ser capaz de dizer alguma coisa, contar uma história com alma, repercutir o eco do mundo no coração alheio, e isso não é nada fácil, porque tudo o que se escreve parece ficção na hora da leitura, exceto a maledicência. Neste caso, quanto mais gratuita, vulgar e reles for a maledicência, mais a narrativa assume tons de realidade e, sobretudo, de verdade. O povo fica feliz e diz:

- Assim é que é! Assim é que se fala!

O problema é que a má-língua incide sempre sobre as questões da atualidade e a atualidade é aquilo que está à nossa frente, escarrapachado diante dos olhos, mas não se enxerga de modo algum, a não ser com o medo e a paixão do momento, ou seja, com egoísmo puro.

Eu cá evito a toda a força falar sobre temas da atualidade e, por isso, guardo sempre para a próxima crónica tudo aquilo que, de facto, quis dizer na que enviei para publicação. E, assim, ganho mais um dia na vida, apesar dos erros…

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