A peregrinação que vamos cumprindo em cada passo, encontra escolhos, inevitáveis uns, consequentes outros.
1 - Nascemos, normalmente acarinhados, numa família que nos desejou. Somos esponja a absorver valores, linguagem, gostos, afetos, atitudes.
Até que um dia, a nossa brincadeira com vizinhos e irmãos é rasgada pela notícia da partida dum avô, com quem havíamos jantado no dia anterior. A medo, tocamos a pele fria, vemos as mãos que já não acariciam, a boca que já não abençoa, os olhos que já não conseguem rir.
Quando voltamos à mesa, há faces molhadas, pouca voz, um lugar vazio…
2 - Crescemos em idade e graça, chegamos ao fim do primeiro ciclo.
Nova escola.
Olhamos em redor, poucos são os colegas do ano anterior.
Ficamos intimidados, solitários.
Bate-nos uma saudade…
Felizmente logo se esbate, porque toca a chamada para uma aula qualquer.
3 - Chega a tropa. Novos desafios, novos «camaradas». Mobilizados para uma missão onde acontece uma emboscada é o parceiro do lado o atingido. Ajudamo-lo com a frieza das situações que nos tornam empedernidos.
Quando a noite cai, não virá só. Trará a revivência da situação, o grito da partida em angústia. Cresce a revolta de quem jamais entenderá a guerra…
4 - Eram gestos de ternura e paixão, beijinhos a toda a hora, confissões esfusiantes nas redes sociais, promessas de amor eterno, até que um dia…
Sem saber bem como aconteceu, cada um toma o seu rumo, carregando uma dor que não se explica e demora a secar…
5 - Apesar dos filhos fantásticos , o casal entra em ebulição, a relação esvai-se.
Acusações mútuas, aviltamentos. Divórcio.
Processo judicial, lavagem de roupa suja, regulação das responsabilidades parentais.
Chantagem, filhos moeda de troca e vingança.
Afastamento sem regresso…
6 - É um amigo com quem fazemos tertúlias de música e poesia, trocamos poemas, comentamos publicações em redes sociais, partilhamos jantaradas com copos e muita canção.
Até que um dia, desaba a notícia.
Foi tudo muito rápido. Nem deu para visitas, despedidas, palavras de conforto. Nem um abraço em adeus…
7 - Era exímio na condução. Rampas, ralis, gincanas, um artista do volante.
Naquela tarde, descontraidamente, desestressava-se numa volta banal em mota potente. Manobra mal calculada e …
Os amigos ainda lhe fazem homenagens quando se encontram para novas disputas…
8 - Dia de tosquias. Lá iam ao negócio, carro transformado em bar. Vinho seco, sangria, sidra e petiscos. Um dia de festa, partilha de copos com amigos que por ali passavam.
E no regresso da serra, naquela curva sem proteção, escorregadia, o carro abalou ribanceira abaixo.
Partiu jovem, abandonando projetos em flor, e deixando uma família destroçada…
9 - Conhecemo-nos num encontro combinado à distância. Mostrou-nos a casa, a coleção de presépios, os livros escritos que mos autografou.
Cantámos, rimos, firmámos amizade.
Acompanhei o percurso oncológico, que se acobardava perante a luta serena, a Fé inabalável, a esperança perene. Mas não desistia e ganhava campo, cimentando a fragilidade.
Dotado de capacidades únicas, cativou-me à primeira. Acompanhei com admiração a sua garra.
Esgotado, iniciou uma caminhada silenciosa, para o colo do Pai, onde foi aninhar-se feliz…
Ficou-me a saudade, a gratidão e uma lembrança que não se apaga mais…
As perdas são uma constante da vida.
Moldam-nos, formam-nos, alentam-nos, esmagam-nos, fortificam-nos.
Até o fim, farão parte integrante de nós!...
José Alberto Gonçalves escreve à terça-feira, de 4 em 4 semanas