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Artigo de Opinião

HISTÓRIAS DA MINHA HISTÓRIA

6/12/2024 08:00

Um dia destes, fiquei aflita, quando, atacada por uma incontrolável necessidade de espirrar, me deparei sem um lenço na carteira. Por sorte, não estava só e fui socorrida. Ultrapassada a crise, prossegui caminho a pensar na evolução deste acessório, hoje apenas um quadrado de papel branco, inodoro, ou aromado e com alguma cor para facilitar a sua rápida identificação na prateleira do supermercado. Mas nem sempre foi assim.

Em tempos idos, os lenços eram de pano e evidenciavam a classe social de quem os usava, consoante o tecido de que eram feitos — seda, linho, algodão ou cambraia — e o requinte e materiais com que eram decorados, alguns com fio de ouro, orlados com rendas e muitos com o monograma do seu proprietário. Quantas gerações de bordadeiras madeirenses não contribuíram para embelezar este pequeno e útil acessório?

O lenço tem uma presença assídua na literatura. O incontornável Shakespeare usa-o para conduzir ao final trágico de “Otelo”, que enciumado, ao saber o lenço da amada Desdémona na posse de outro homem, não hesita em matá-la. Logo a descobre inocente e apunhala-se a si próprio. No Romantismo, o dito quadrado de pano teve largo protagonismo. A morte do tísico era prenunciada pelo espasmo de sangue derramado no lenço, após um ataque de tosse. Para qualquer lágrima da personagem feminina havia sempre um lenço do cavalheiro prontamente disponibilizado, e a sua devolução poderia ser o pretexto perfeito para um reencontro. Deixado cair de forma pretensamente acidental pela dama, logo o apaixonado se apressava a recolhê-lo e devolvê-lo. Os mais tímidos ou conformados com a impossibilidade do relacionamento amoroso guardavam o lencinho como tesouro.

O lenço e o amor também se cruzaram nas tradições populares, por exemplo, no “Jogo do lenço” que oferecia aos apaixonados a oportunidade de ficarem de mão dada, sem despertar suspeitas alheias. Não poderia deixar de mencionar os “Lenços dos namorados”, nos quais, com agulha e linha se escreviam sentimentos em quadras singelas como esta: “Aceita este lencinho/ Que no mato apanhei/ Ainda vai orvalhado/ Com as lágrimas que chorei”. Uma tradição do norte de Portugal, iniciada na lonjura dos tempos e que perdura, ainda que um tanto adulterada para servir propósitos turísticos, sendo que muitas das frases originais são substituídas por versos de poetas conhecidos, ainda que grafadas com erros de ortografia para forjar a autenticidade que, na verdade, lhes falta.

Quando os barcos partiam do cais, os lenços brancos acenavam em despedida, e secavam as lágrimas de quem ficava e de quem ia, muitas vezes, para sempre. Este gesto de lenço a acenar vemo-lo ainda hoje em estádios de futebol, quando os maus resultados se sucedem e os adeptos descontentes manifestam o desejo de substituição do treinador.

O lenço de papel, não tem a aura romântica de outras eras. É, contudo, uma comodidade e penso que contribuiu para diminuir consideravelmente o horrível hábito de cuspir ou expelir mucosidades, narina fora, para o chão. Também se diversificaram as suas possíveis utilizações para acudir a outras necessidades, como infelizmente demonstram os aglomerados de lenços descartados por trás de arbustos, um pouco por todos os percursos das nossas serras. Os reais custos ambientais deste, e de outros confortos descartáveis, desvalorizamo-los, por enquanto. Como serão os lenços do futuro?

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