Sonhei que estava a atravessar um deserto a pé sozinho. Uma grande parte dos meus sonhos consiste em longos e intensos passeios a pé sozinho, tão longos e intensos que duram a noite inteira e depois, já acordado, prosseguem dentro da minha imaginação.
Às vezes atravesso montanhas mais altas do que o Evereste, ou vales mais fundos do que a Fossa das Marianas, ou então vou por veredas junto à costa sempre a ver o mar e o mar está sempre calmo, ou cruzo cidades, vilas e aldeias de aspeto fantasmagórico, exatamente como as aldeias, as vilas e as cidades que já visitei na qualidade de fantasma, ou vou através de campos agrícolas muito viçosos e cheios de flores, ou subo e desço rios como se fossem veias no corpo de Deus, ou então sigo por uma linha férrea interminável rumo ao abismo, aonde nunca chego, porque, de facto, os sonhos nunca acabam – os sonhos estão sempre a começar.
No decurso destas caminhadas oníricas raramente me cruzo com outras pessoas e quando isso acontece elas são meros elementos paisagísticos. Estou sempre sozinho. Ninguém me persegue, ninguém foge de mim. Não há medo, nem perigo, não há desejo, nem ambição. Sou apenas eu a andar a pé e depois acordo exaurido e passo o dia inteiro nesse estado, exaurido, como se tivesse mesmo percorrido quilómetros e quilómetros de caminho durante a noite e foi isso que me aconteceu também após a última travessia do deserto.
Acordei cansadíssimo e a meio da manhã, quando me deslocava a pé de casa para o centro da cidade, pensei que ia morrer, pensei mesmo que ia morrer e disse em voz alta:
– Vou cair morto na rua.
Este pensamento trouxe-me à memória o que dizia a minha tia Teresa quando eu, diante do seu amor incondicional e face a um dilema insolúvel, uma angústia insanável, uma adversidade inultrapassável, me confessava apoquentado com a existência, sobretudo com a confusão que reside entre o ser e o não ter. Não ter dinheiro, claro! Que mais podia ser, já que sempre tive tudo?
Ela dizia-me assim:
– Não te preocupes com isso, porque a qualquer momento acontece uma morte.
Depois dava-me a entender que essa morte podia ser a minha.
Nunca me deparei com uma forma tão brilhante como esta de dizer ‘Só não há remédio para a morte’ e, desde então, tenho-a presente diante de todos os meus problemas e aflições. Por mais esmagado que me sinta, por mais impotente e alquebrado que esteja, por mais triste, desiludido e desesperançado que me vista e sirva a mim e aos outros e ao mundo, como ontem, hoje e amanhã, eu bem sei que a qualquer momento posso morrer.
– Vou cair morto na rua – disse eu em voz alta e continuei a andar.
Aparentemente, o mecanismo que me mantém vivo funciona bem, quer ao nível da estrutura material como da estrutura imaterial, descontando, como é óbvio, uma dorzinha aqui e outra ali, uma no corpo, outra na alma, umas dorzinhas chatas que advêm do envelhecimento do invólucro e do estranho rejuvenescimento da consciência, mas que não têm força para me demoverem da existência. Tanto quanto sei e aprendi a meu respeito até agora, só o ouro é capaz de me bloquear e derrear. É o meu ponto fraco, o Diabo da minha vida. Sou capaz de viver muito com quase nada, mas sucumbo facilmente à pressão para multiplicar o pouco que tenho. Venha ela de onde vier, fico como um escorpião rodeado de fogo e, para me salvar, desisto de tudo.
Digo-vos, tenho arte e engenho para escrever agora mesmo o melhor poema do mundo, mas jamais conseguirei ganhar um tostão que seja com isso.
Às vezes, penso que vou acabar como o meu pai, sozinho na casa das zonas altas, já para lá dos oitenta, mas ainda elegante e com cabelo, um cancro na próstata pronto para me matar em três tempos e um rendimento mínimo para cobrir necessidades básicas, um cão amigo a passear no quintal, como o Tonecas, um poio de semilhas a florescer ao lado e eu a dizer coisas sábias e enigmáticas, do género:
– Hoje deitei-me preocupado e cheio de dores, mas dormi bem.
Ou:
– Não tenho dores e não devo nada a ninguém, mas hoje dormi muito mal.