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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

12/03/2021 08:04

Lembro-me da minha sombra no chão da Zambézia, em movimento na terra vermelha e ao luar também, como um fantasma em África, e isto faz-me pensar na finitude de todas das coisas, na insustentabilidade das certezas e no vão triunfo da memória. É preciso contar histórias para combater o esquecimento, ainda que as palavras desfaçam a realidade com os seus múltiplos sentidos, transformando-a em ficção e fábula e névoa, como um espírito deslizando fora do tempo e do espaço. Seja como for, é fundamental contar histórias, gastar palavras, sangrar o passado, inventar o futuro.

- Estou de passagem.

A minha sombra em África evoca uma época de viagem, aventura e desnorte, que foi também de espanto e perigo e medo, uma estação mágica que se apresenta agora como um espectro errante face à imobilidade do presente, este horrível esperar que tudo passe, como se fosse possível aliar-se do mundo e encontrar a salvação debruçado à janela, com salsa, manjericão, roupa a secar e tudo isso, depois de tantos mortos, de tanto sofrimento, de tanta vertigem existencial sugada por séculos e séculos de esperança e vazio no coração dos homens. Mas isto são coisas que não se deve dizer, porque atiçam o fogo das imperfeições, alimentam fantasias e estimulam revoltas e maus comportamentos.

É melhor ficar em casa.

Fecho os olhos e durmo, não durmo, caio do cavalo na estrada de Damasco, sonho que sou um anjo, um anjo mau. Meu Deus, quantas vezes o sol desapareceu sem ter reparado nele? Quantas vezes o mar escureceu e a lua e as estrelas e o caminho à minha frente desapareceram sem eu dar conta disso? Quantas vezes eu disse: Hoje não faço mais nada porque estou farto do dia? Eu sempre fui assim: Um homem que pensa o mundo e perde tudo. O pensamento… O que é o pensamento? O princípio do caos, o fim da simplicidade.

- Estou de passagem.

A sombra do meu corpo e do meu cabelo ao vento nas picadas de Moçambique tem hoje, de vez em quando, a força implosiva e o poder misterioso de transformar os lugares onde me encontro numa espécie de nada - um país aonde só é possível chegar sem corpo nem alma, um túnel escuro sem luz ao fundo, um poço sem fundo, um labirinto de outra dimensão, da décima dimensão, da 666.ª dimensão - a dimensão do abismo e da irrealidade.

- Estou de passagem.

Era isto que eu dizia às pessoas, quando me perguntavam o que estava a fazer em África, tão longe de casa e ainda por cima sem salário - eu não ganhava nada, andava ali como um vagabundo -, coisa que era difícil de entender, porque, de facto, quase todos corriam atrás da fortuna e eu tão só atrás a minha existência e das nuances do meu vulto no universo e a coisa era de tal modo absurda que, às vezes, eu só conseguia falar com palavras-iguana, como se as pessoas à minha frente fossem poderosas ou doentes ou perigosas e me incutissem sentimentos de perseguição, de calúnia, de traição, e depois ficava a pensar que diabo eram palavras-iguana. Porque não palavras-tabaibo? - Pensava eu. Ou palavras-lâmpada-quebrada? Ou palavras-lâmpada-que-acabou-de-explodir-em-cima-da-tua-cabeça? Ou outra porra de palavras quaisquer?

- Estou de passagem - dizia eu. - Estou só de passagem.

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