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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

5/03/2021 08:04

O Tonecas está estendido em cima do zinco a apanhar sol. Mal avista o carro e percebe que a manobra é para estacionar, levanta-se, confirma que sou eu e desata a correr, vem disparado pela escadaria abaixo e fica a tremer de felicidade, faz-me uma festa do caraças, e depois acelera pela escadaria acima, vai buscar uma bola, coloca-a aos meus pés - já estamos no quintal -, afasta-se e fica a marcá-la, à espera do remate, eu remato, ele corre, apanha a bola, e a cena repete-se, traz-me a bola, eu remato, ele vai buscá-la.

É um cão espetacular e eu sei que tem saudades do meu pai. Foi o meu pai que o trouxe para casa, há pouco mais de um ano. Era uma bola de pelo branco e amarelo. Super feliz. Entretanto, cresceu, não muito, e tornou-se mais esguio, mas sempre peludo e alegre, embora sinta a falta do meu pai, que morreu em dezembro. Agora passa muito tempo sozinho, quase como se fosse uma pessoa.

As pessoas, a meu ver, são os animais que passam mais tempo sozinhos. Mesmo quando estamos em manada, cheios de confissões e de fingimentos, sóbrios ou embriagados, há um traço oculto de solidão que marca a nossa presença no grupo - um sinal no olhar, uma tensão muscular, um gesto crepuscular, qualquer coisa indelével que nos denuncia no vazio do ser. Não há volta a dar, embora haja sempre muito para negar. Além disso, ninguém é capaz de dizer toda a verdade aos outros, seja lá a quem for, o que é uma prova irrefutável da solidão do indivíduo.

O Tonecas vem atrás de mim. Vou tratar das galinhas, dar-lhes de comer - milho estraçoado, folhas de couve, alimento 120 -, vou recolher os ovos também - as galinhas fartam-se de pôr ovos e há uma que os põe verdes, porque é uma galinha do Chile, explicaram-me há tempos - e, pelo caminho, constato, uma vez mais, que o poio está cheio de mato e o mato está cada vez maior, a querer tomar conta de tudo, porque é a natureza do mato, e a minha é ficar angustiado com isso, com o mato a tomar conta de tudo, e a humidade também, e os ratos - já gastei um saco de veneno para dar cabo deles, mas voltam sempre, os cabrões dos ratos - excelente bicho para suportar o fim dos tempos, não haja dúvida, eles e nós - e a ruína das coisas também me angustia, a ruína das paredes, da fazenda, do tempo, do espaço e da vontade morta em mim.

- Um dia vou salvar isto tudo.

O Tonecas fica a olhar para mim, como se tivesse percebido, e eu insisto:

- Isto ainda vai ser uma fazenda no paraíso.

De facto, acho que ele entende muito de solidão, talvez até mais do que eu.

Agora estou no meu quarto e ele está em cima da cama a olhar fixamente para mim e eu estou a olhar fixamente para os livros - não tenho vontade de fazer nada a não ser olhar fixamente para as coisas. Já li alguns livros na vida e estou sempre a comprar mais, mas ainda não encontrei o livro da minha vida. Nenhum explica ou compreende a minha solidão e eu ando sempre à procura de respostas para além da sabedoria.

É tudo muito complicado, sabem, complicadíssimo. Só a morte se apresenta com uma simplicidade esmagadora e desconcertante, mas eu não a conheço. Ou melhor, conheço algumas mortes, mas são todas de outros, do meu pai, por exemplo, da minha mãe, de alguns amigos e de pessoas que conheci, pelo que permaneço ignorante sobre a matéria.

Abri as gavetas da secretária e agora estou a folhear cadernos e papéis antigos, coisas escritas por mim há tanto tempo e que escaparam do fogo, quando eu era imortal e decidi acabar com a escrita na minha vida e fiz uma fogueira com tudo o que tinha escrito até então, exatamente como me apetece fazer agora também, de vez em quando, queimar tudo, premir a tecla delete e nisto viro-me e vejo o Tonecas muito interessado em Jorge Luís Borges, pois prepara-se para abocanhar ‘Biblioteca Pessoal’ e fugir para o quintal, onde haveria de proceder a uma leitura rápida e exaustiva, folha por folha, até ficar em nada, como faz com o jornal.

- Para com isso, Tonecas!

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