GATEIRA PARA A DIÁSPORA
Poucos dias depois, num teatro de Estrasburgo (França), assisti a uma parte das 12 horas contínuas de encontros dos residentes da cidade que falavam da relação entre o trabalho e as nossas vidas. Quando cheguei, estava um operário da construção e um médico em cena. Logo depois veio um astrofísico: explicou-nos que foram precisos 300 000 anos para formar a primeira estrela e que quando uma estrela morre difunde toda a sua matéria no espaço circundante. Daqui por um bocado, pergunta-se a um trabalhador não identificado (seríamos nós?): «Poderá ensinar-me alguma coisa?». Obrigado, Azagaia!
A greve da companhia dos caminhos-de-ferro francesa não nos permitiu ir a Dijon, capital da Borgonha, onde se instalou desde 1799 o Museu de Belas Artes no antigo palácio dos Duques dessa mesma região. Até ao início de Abril esteve patente nesse museu uma retrospectiva dedicada a Maria Helena Vieira da Silva por ocasião dos 30 anos da sua morte (1992). Intitulava-se L’Oeil du Labyrinthe (O Olho do Labirinto) e também se construía em torno da forte ligação da artista com o casal Kathleen e Pierre Granville. Este casal doou várias criações de Vieira da Silva ao museu, detentor de uma das mais completas colecções existente em França da mesma artista. Para completar tal doação, Vieira da Silva legou ao museu de Dijon em 1972 o maior quadro que pintou e que demorou 9 anos a ser concluído - reconhecido como um dos símbolos da colecção moderna desse museu -, tendo recebido o seu título do próprio Pierre Granville: Urbi et Orbi. Vieira da Silva gostava de pintar «lugares vistos de muito longe, lá onde o que se vê não é muito explicado». Na recente mensagem Urbi et Orbi do Papa Francisco - numa altura em que se celebra simultaneamente a Páscoa cristã e a judaica, bem como o Ramadão -, este relembrou-nos alguns desses lugares como o do povo ucraniano, o do povo russo, a Síria, a Turquia do terramoto - e esperemos que não haja outro devido às próximas eleições -, o Líbano, a Tunísia, o Haiti, a Etiópia e o Sudão do Sul - que nasceu enquanto país no dia em que nasci enquanto marido -, a República Democrática do Congo, o povo rohingya, as vítimas do terrorismo internacional, os migrantes e os pobres. Só com estes lugares podemos lidar com esta tensão entre os lugares vistos de muito longe e a necessidade de olhar mais de perto.
Lourdes Castro tratava Vieira da Silva carinhosamente de «avozinha», havendo uma grande afinidade entre as duas, também pelo facto de terem vivido e criado em Paris. No dia em que fomos ver a exposição Como Uma Ilha sobre o Mar: Lourdes Castro patente no Mudas — Museu de Arte Contemporânea da Madeira, Desidério Sargo, dos Serviços Educativos do museu, mostrou-nos também o postal de uma andorinha que Lourdes fizera e que, quando olhávamos mais de perto - outro dos seus ensinamentos - víamos que partes da asa e do corpo tinham sido recortadas a partir de um exército em parada. Vimos a exposição no dia 24 de Fevereiro, em que se assinalava um ano da guerra de alta intensidade na Ucrânia. A poesia está na rua?