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Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

17/05/2024 08:00

No princípio, tudo é um encontro com a realidade e a realidade é tão ordenada como se fosse nada. Depois, começa o resto e o resto é apenas a nossa vida e nós éramos dois amigos à conversa na cidade, um das zonas altas, outro do campo, como se dizia naquele tempo e era o tempo da imortalidade, o início dos nossos 20 anos, um tempo tão longínquo que até se podia fumar dentro dos bares e em quase todos havia uma máquina de póquer num canto e daquela vez o dia fazia um desenho com cores escuras, porque era inverno e tinha estado a chover toda a tarde, até que anoiteceu e o céu ficou limpo e agora mostrava um ror de estrelas e o mar era um extenso negrume e nós passeávamos na Avenida do Mar a trocar ideias sobre vários assuntos e a dada altura o meu amigo preparou um sumptuoso escarro e projetou-o sobre o muro em direção ao Atlântico e depois disse:

– Eu cá sou inculto e dou erros ortográficos, mas se me propusesse escrever alguma coisa, fazia-o como já te disse.

Ele bem me intrujava, de modo que respondi assim:

– Romances são aquelas histórias que nos aborrecem de morte porque nunca mais acabam e isso não tem nada a ver com a cultura e os erros ortográficos, compreendes?

Ele encolheu os ombros e disse:

– De críticos estamos todos fartos. Não digas isso a ninguém, senão nunca mais pões um livro cá fora.

Deu uma gargalhada e acrescentou:

– Já que estamos a falar disso, vou expor-te aqui um problema. Suponhamos que o meu sonho era escrever versos, mas era incapaz de ler os livros que queria escrever. Então, diz-me lá, com que cara chegava eu ao pé de um editor a pedir que publicasse os meus poemas? Vês o problema, meu caro? É como te digo, de críticos estamos cheios!

É claro que já estávamos quase bêbados, como se vê pelo discurso, mas concordámos em ir beber mais uma cerveja e agora era uma esplanada ali no meio da avenida e estava deserta porque a chuva pusera toda a gente a andar e então fomos para dentro e sentámo-nos ao balcão. Um dos empregados estava a lavar copos mesmo à nossa frente e outros três cavaqueavam ao fundo, todos sem nos ligar nenhuma. Depois, o que lavava copos fez um gesto com a cabeça, a perguntar o que queríamos.

– Duas imperiais, se faz favor.

Quando as colocou à nossa frente, resmungou:

– Está um tempo de merda, não está?

– Está, está – respondi.

Ficámos ali a beber e a fumar e a conversar sobre livros e literatura, política e filosofia, economia e religião e também sobre a puta que pariu tudo e mais alguma coisa e a seguir decidimos mudar de sítio e fomos por uma rua estreita ladeada de prédios com montes de lojas no rés-do-chão, todas fechadas porque era domingo, e algumas tascas, todas abertas. Entrámos numa. Tinha um balcão comprido e muitas mesas também. Ficámos ao balcão e pedimos cerveja. A clientela era reduzida. A meio do balcão estava um indivíduo novo, com um copo vazio à frente. Ao fundo, estavam duas tipas de aspeto ordinário e artificial, a fumar cigarros SG Gigante e a beber café.

O meu amigo olhou para mim com um sorriso manhoso e eu contei-lhe que tinha lido num livro de Hemingway que havia um bar em Havana que tinha uma parte do balcão reservada só para putas.

– Os livros dizem tudo! – Disse ele. – Tudo!

E depois sublinhou:

– Está cada vez mais na hora de tu também dizeres tudo.

A empregada veio atender-nos.

– Faz favor?

Tinha os cabelos escuros, compridos e fartos, os olhos azuis e o nariz adunco.

– Duas imperiais. O copo bem cheio! – Ordenou o meu amigo.

Ela afastou-se e foi tirar as cervejas e eu perguntei ao meu amigo:

– Esta não te fascina?

Ele respondeu com ironia:

– Se estivesse sentada no lado certo do balcão...

Rimos com vontade e bebemos mais quatro cervejas e quando saímos, talvez por volta das dez, falávamos alto para caraças e andávamos já com acentuado desequilíbrio. Ele foi para um lado, apanhar a camioneta para o campo, e eu fui para o outro, apanhar a camioneta para as zonas altas. Enquanto esperava na paragem, vi-o passar dentro do autocarro. Acenou-me. Eu fiz o mesmo e depois pensei que, de facto, a realidade é tão ordenada como se fosse nada e o resto é a vida de cada um.

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