MADEIRA Meteorologia

Artigo de Opinião

DO FIM AO INFINITO

23/06/2023 08:00

O padre nasceu com um delírio por aves e, por isso, passou uma grande parte da vida a deambular nas matas e em cima das árvores, observando e convivendo com pássaros de todas as cores, tamanhos e feitios, e a outra parte passou-a a ler tratados de ornitologia, de modo que ficou a saber tudo sobre os bichos, cuja definição sumária reduz a "vertebrados pulmonados, de sangue quente e com o corpo revestido de penas".

Mas o padre Inocêncio Noha sabe que as aves são muito mais do que isso...

A certa altura, pouco depois da ordenação sacerdotal, o entusiasmo ornitológico começou a derivar para a alucinação e um resquício de loucura instalou-se para sempre no seu olhar, incutindo-lhe um misto de ira e serenidade que tanto fascinava como aterrorizava quem com ele se cruzava.

O padre apaixonou-se em particular pela ordem dos Psitaciformes e em especial pela família dos Psitacídeos, à qual passou a dedicar toda a atenção e estudo.

O escritório povoou-se de livros sobre papagaios e uma belíssima coleção de fotografias, ilustrações e retratos dos representantes das 330 espécies da família revestia as paredes do chão ao teto, não havendo espaço sequer para um crucifixo. Dezenas de estatuetas em pedra, madeira e metal ocupavam todos os cantos e recantos, na companhia de molhos e molhos de penas garridas. Por fim, ocupando um lugar de destaque em cima da mesa principal, surgiu um exemplar embalsamado do género Amazona aestiva, o papagaio-verdadeiro, a que os portugueses deram o nome de papagaio-loiro.

Naquele tempo, o padre Inocêncio Noha vivia no continente e fora-lhe atribuída uma paróquia nos arredores da capital. Um dia, passeando num mercado, no meio de uma profusão incrível de corpos, cores e cheiros, deparou-se com um Psittacus erithaucus na banca de um vendedor de frutos secos. O pequeno papagaio cinzento estava a comer sementes de girassol e o padre estagnou vidrado perante a sua beleza. Quando o papagaio percebeu o pasmo do espetador, insuflou as penas do pescoço e bateu as asas em sinal de saudação. Depois, movendo a língua redonda e carnuda, disse com uma clareza brutal:

- Olá! Como está?

Aí, o padre viveu um momento de transcendência absoluta e quase tocou na face de Deus, pelo que convenceu o dono da banca de frutos secos a vender-lhe o papagaio e ofereceu tanto dinheiro e com uma tal espontaneidade que ficou para sempre sem saber ao certo quanto pagou por ele.

Em casa, quando estava a pensar num nome para dar ao querido príncipe emplumado, hesitando entre Salomão e Lírio, viu o problema ser subitamente resolvido ao ouvir, estupefacto, o papagaio dizer:

- O meu nome é Vita.

Foi à conta deste papagaio que a alucinação do padre Inocêncio Noha se agudizou e ultrapassou os limites.

A dada altura, concebeu a ideia de que a ave da arca de Noé que regressou a bordo com sinais de terra firme fora um papagaio do género de Vita e, logo de seguida, pôs-se a trabalhar numa tese sobre a matéria. Após longas e intrincadas investigações, seguiram-se semanas e semanas de escrita febril, até que deu por concluída a obra, a seu ver com grande mestria e elevada teologia. Era, a todos os níveis, uma obra-prima, digna do aplauso efusivo do Vaticano e do mundo inteiro, pelo menos do mundo crente.

Então lá foi o padre Inocêncio Noha todo confiante a caminho do Paço Episcopal, com o papagaio Vita ao ombro, como um pirata de antigamente, para apresentar a tese ao bispo. Contudo, a receção não correu como esperava. Houve muita frieza da parte do prelado e muitos risinhos malévolo-trocistas da parte do secretário. Ainda assim, deixou ficar lá o manuscrito para análise.

Duas semanas depois, o bispo chamou-o e, sem qualquer sombra de piedade, desfez-lhe os sonhos de reconhecimento e glória, transferindo-o do continente para uma minúscula paróquia da ilha, onde permaneceu até morrer, velho, louco e triste, dois anos depois do papagaio Vita.

OPINIÃO EM DESTAQUE

88.8 RJM Rádio Jornal da Madeira RÁDIO 88.8 RJM MADEIRA

Ligue-se às Redes RJM 88.8FM

Emissão Online

Em direto

Ouvir Agora
INQUÉRITO / SONDAGEM

Concorda que Portugal deve “pagar custos” da escravatura e dos crimes coloniais?

Enviar Resultados

Mais Lidas

Últimas