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Artigo de Opinião

silviamariamata@gmail.com

5/05/2024 08:00

Na primeira metade do século XX, as famílias pobres tinham de pôr os filhos a servir em casa alheia como moços, em vez de os mandar para a escola. Esta é a história de um desses meninos que nunca foram crianças.

1937. Ele tinha dez anos. Era a primeira vez que ia ficar a dormir fora de casa. A água estava de giro e ele tinha de trabalhar de noite na rega do feijão e das semilhas, quando não, com a calmaria, ia abrasar tudo.

A senhora Mariazinha, assim se chamava a patroa, chamou por ele e apontou para um cobertor velho no chão frio da cozinha, e disse-lhe:

- Deita-te – enquanto se afastava com a luz a petróleo numa das mãos!

Ele deitou-se como pode, mas a parede gélida e calada trouxe-lhe à memória histórias de feiticeiras e de bruxas que andavam à noite a rapar o cabelo à pequenada. Fechou os olhos com força para dormir, embrulhou-se mais no cobertor, mas o sono não vinha! Afinal, bom era dormir com os irmãos, três em cada cama, um de cabeça para baixo e pés para cima, apesar das caneladas, quando algum sonhava com o bicho-pesadelo! Tinha os olhos a arder de fazer força a chamar pelo sono! Esforçava-se por pensar em coisas boas, só que as malditas das bruxas não lhe saíam da cabeça e faziam da rebendita para ele ter ainda mais medo. Era a história trágica daquele avô do passado que tinha ido à meia-noite em ponto a um cruzamento e se encontrara com o Diabo que lhe dera uma forte malha e o pôs a andar cambado para o resto da vida; era a história da Maria do Tanque que resondava os filhos e os entregava aos demónios todos - “O diabo te carregue, pequeno!” – e o Diabo em pessoa veio buscá-los por uma canela e ela ficou a gritar todas as noites “Meus queridos, meus queridos filhinhos...”; e a mais recente história macabra, a da ti Camacho, que tinha um bicho vivo, com uma grande boca devoradora, dentro de um dos seios e todos os dias pela manhã, o cadelo do bicho, deitava a bocarra de fora e pedia carne numa voz cavernosa! Toca a pôr ali um Quilo de carne de vaca para ele se fartar! Meu Deus! Meu Deus! E a história das lagartixas que entraram pelo nariz da ti Manelinha, quando lhe deu uma madorna debaixo do corredor da vinha, e as bichas foram por ali abaixo para a barriga dela, e ela, passado um ano, pariu mais de um cento delas?

Imentes estava nestes pensamentos, cansado, sem saber já bem de si, começou a rezar de mãos para o céu.

- Minha Nossa Senhora, ajuda-me, pelo amor de Deus. Eu prometo que não digo mais palavras feias, nem faço mais tontices! Ave Maria cheia de graça, comi o milho e joguei a taça! Não! Não! Ave Maria, cheia de Graça, o Senhor é convosco, bendita sois vós entre as mulheres...

Enquanto rezava, acalmava-se, mas agora era aquela imensa vontade de fazer pipi. O medo do escuro, o medo daqueles arredores que ele não conhecia de noite, o medo das histórias ainda quentes na sua cabeça, o frio a descer pela chaminé, paralisavam-no. Não sairia dali para ir à retrete, nem ao terreiro se aliviar. Isso, não! Só se levantaria quando o chamassem para ir regar, talvez daí a instante! Esperou o que lhe pareceu uma grande hora e nada! Já não aguentava mais! Levantou-se e assim que pôs os pés no cimento frio do chão, mijou-se! Depois, pôs-se a apalpar! Ipa! Que aquilo corria que era uma coisa! Estava trompicado! Era desta que ia para casa de vez e adeus manteiga para dar no pão e adeus dois decilitros de azeite para assentar no rol e pagar no fim do mês! Ia ficar sem jorna e agora como era que a mãe ia pagar a conta da venda?

Foi assim que, cansado de ter medo e esgotado de tanto pensar, adormeceu, mas foi logo acordado para fazer as vezes de homem na folia da água de giro! É sempre assim! Logo agora que queria tanto dormir!

OPINIÃO EM DESTAQUE
Coordenadora do Centro de Estudos de Bioética – Pólo Madeira
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Há uma dor estranha, quase impossível de explicar, que nasce quando alguém que amamos continua aqui... mas, aos poucos, deixa de estar. Não há funerais,...

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